A CRIANÇA E A SUA RELAÇÃO COM O INCONSCIENTE REAL
_Mirta Berkoff

Mais além do Inconsciente
Podemos conceber o primeiro ensino de Lacan como aquele onde o real pode ser atravessado pelo significante. Fica colocada uma significação que colocaria uma certa ordem no real, uma elevação do real à qualidade do significante.

Em se tratando do primeiro ensino, poderíamos assim dizer: o nome-do-pai metaforiza o desejo da mãe e se produz a significação fálica. É certo que nesta metaforização há tropeços, mas que nesta época de Lacan se devem ao imaginário.

Mas logo temos que realizar uma inversão da teoria. Miller diz que a metáfora paterna é destituída já no Seminário IV. Caso contrário, como dar conta da falha do saber no real que se verifica? O nome do pai se relativiza se não há saber no real. Passa a ser um nome entre outros que tentam em vão dominar o real. Isto acarreta em uma desvalorização da própria palavra. O significante e o significado se inscrevem onde, no real, não há saber sob a forma do semblante.

O nome-do-pai é, poderíamos dizer, o semblante mais útil como um S1 já que permite ler o gozo.

Porém mais além do pai temos essa zona do impossível de ler pelo significante. É uma zona do vazio do sentido. Ali o significante deve ser tomado pelos efeitos que causa mais do que a significação que tenha. Trata-se do gozo, não do sentido, que produz o significante. Estamos assim falando de uma zona onde não chega o pai, onde o sintoma não chega a cobrir-se com uma significação, esta é a zona do inconsciente real.

Assim como neste último ensino o saber é rebaixado em detrimento do real também se rebaixa o inconsciente como saber combinado ao aparato significante-significado. Por isso Lacan em seu último ensino propõe como perspectiva um mais além deste inconsciente, uma zona onde o gozo é opaco. "O que guia Lacan no final do seu "Seminário Sinthome" é outra perspectiva do inconsciente, é uma perspectiva que faz do inconsciente um real. " (Miller, J-A: El ultísimo Lacan, B.s . As. Paidós, Año 2013. Pág 17). É dizer, ele apresenta o inconsciente como exterior à máquina significante que produz sentido. O conceito de inconsciente estruturado como uma linguagem se desordena.

Seguindo Miller (2013) quando lê o último Lacan, estamos expondo duas dimensões do inconsciente. Um inconsciente que se caracteriza pelo encadeamento significante, que está em relação ao Outro e é interpretável ao que chamamos transferencial e outra dimensão onde o inconsciente pode ser tomado como real, onde o lapso, como qualquer outra formação não leva a interpretação de nenhum sentido

Poderíamos dizer que as formações do inconsciente, se constroem ao redor de um núcleo vazio, um núcleo de real.

Este furo que podemos chamar inconsciente real é exterior ao Outro do significante. Está vinculado ao traumatismo da língua sobre o corpo.

Neste sentido, o inconsciente é o traumático, trauma, traumatismo, "trou", furo, vazio da estrutura. Ao ser exterior à máquina que produz sentidos, este inconsciente tem um dizer opaco no que retorna a dizer sempre a mesma coisa.

Miller nos diz em seu curso "O ser e o Uno" que não se trata da repetição que sempre é do diferente. Trata-se, porém, do mesmo e ele o chama de iteração. O que itera é um gozo que não está relacionado a palavra, nem ao sentido, senão ao corpo mesmo. Temos que entender o inconsciente real como acontecimento do corpo que é, portanto, a condição do inconsciente como saber, como efeito de verdade.

Este dizer opaco, sem sentido é um solilóquio, falar só. Miller define o inconsciente mediante o autismo, porque diz que apesar de ser falante, o parlêtre fala sozinho.

 

A criança e o inconsciente real
Qual é a relação da criança com esta zona fora do sentido?

A criança está situada entre o enunciado e a enunciação, ainda não está tomada inteiramente no discurso. Isto implica que o S1 amo não está ainda totalmente interiorizado e funciona desde fora ². Há algo desse operador do pai que ainda não terminou de ligar o gozo ao sentido comum.

O sentido comum do pai é o mais (X) rotineiro dos sentidos.

Assim, a criança está mais próxima do fora do sentido, uma vez que ainda não estão instaurados os semblantes na língua pelo uso comum que se faz deles. Por isso é fácil "perceber no jogo infantil o vazio que se introduz no uso da língua"³. Eric Laurent diz que o jogo da criança permite colocar seu gozo nesta zona que está fora da captação da língua dos adultos pois não usam a língua para designar, mas para gozar dos fonemas.

Cada vez que aparece a dimensão do sentido, cada vez que tentamos nos comunicar, que usamos a palavra, há algo do gozo que não passa ao sentido, foi o que Lacan chamou de "não há relação sexual". Como não há comunicação, porque não há relação, aparece sempre a partir da dimensão do sentido, a dimensão fora do sentido onde o gozo se aloja.

Eric Laurent apresenta um exemplo do jogo da sua filha, tal como Freud nos apresenta o jogo do seu neto. Mas, o que vamos ressaltar do jogo é outra coisa, pois não se trata colocar ênfase no simbólico da rede significante que fisga o gozo, senão em dar-se conta da zona de sem sentido do significante da qual a menina goza, pois ainda não se deixou tomar totalmente pelo uso comum da linguagem, o que lhe permite jogar mais livremente com os sons e o sem sentido da língua.

Laurent conta que sua filha lhe diz: "então faça como eu, Zin, boom, zin boom", indicando-lhe os dedos de uma mão. Ele o repetia, mas ela lhe dizia que não estava bem, e continuava dizendo-lhe que fizesse como ela. Ele conta que repetiu dez vezes e nunca estava bem, porque na repetição não fazia preceder os movimentos pela frase "então faça como eu". Tomando a frase: "então faça como eu" no nível do sentido, para repetir não há necessidade de repetir esta frase, porém si ele a retoma fora do sentido, há necessidade de repetir esta mesma frase "então faça como eu" e particularmente é necessário repetir "então". Neste "então..." de uma maneira muito simples se introduz um vazio no funcionamento normal da língua, um vazio do fora do sentido.

A aposta do jogo era esta, o vazio, a abertura da língua a todos os equívocos, burlando o léxico e a sintaxe.

No processo de aprendizagem da língua a criança se encontra neste "entre" dois, entre o autismo nativo do ser falante e o enredamento com a mentira mental.

Os loucos pequeninos levam um tempo para entrar na debilidade mental própria do ser falante. Neste tempo os vemos gozar da materialidade do significante, do solilóquio e nos dão a oportunidade de perceber de que é feito este inconsciente.

Mirta Berkoff, AME, EOL/AMP. Departamento de estúdios sobre a criança no discurso analítico Pequeno Hans.
Buenos Aires. Argentina.
Tradução: Inês Seabra Rocha – Revisão: Cristina Vidigal.