ENTREVISTA A DANIEL ROY

Daniel, nos interessa saber como você pensa, a partir de sua prática e seu percurso, o lugar que hoje tem a psicanálise com crianças no mundo e também no mundo da psicanálise. Estamos nos referindo a sua prática, mas também à investigação e transmissão.

Queridos/as amigos/as, queridos/as colegas

Para responder-lhes partirei do diagnóstico feito por JAM em sua intervenção: "A criança e o saber" pronunciada durante a primeira Jornada de estudo do Instituto da Criança: "A criança é o sujeito a educar", e precisa: "Não se trata de nada menos que da produção de sujeitos. Se trata sempre de reduzir, de comprimir, de dominar, de manipular o gozo daquele que chamamos criança para extrair dali um sujeito digno desse nome, isto é, um sujeito sujeitado".

Esta vontade, que não é nova, avança hoje abertamente com a contribuição de diversas técnicas, desde o coaching "leve" até à reeducação comportamental "dura".

Esta produção dos sujeitos é "uma questão de poder" – prossegue JAM – entre família, estados e meios. Há, no entorno da criança, uma luta feroz que se desdobra no mercado dos ideais, inclusive das ideologias e, ao mesmo tempo, no mercado dos produtos. Por exemplo, no campo dos sofrimentos modernos, assistimos, no entorno da criança autista, a tentativa de conexão entre ideologias científicas, estratégias comerciais de venda de "métodos de reeducação precoce" e de um intenso lobby midiático elaborado por agências especializadas em campanhas.

Perguntemos: Por que então essas campanhas e esse lobby continuam, ao longo de uma dezena de anos, apoiando a mesma retórica que acusa à "psicanálise" de "culpar os pais" e infiltrando todas as estruturas de atenção da saúde?

Esses vendedores e comunicadores modernos não se equivocam ao possuir essa estratégia: se a psicanálise é atacada assim, é porque para os pais e profissionais constitui um recurso diante métodos ineptos de domesticação e de "gestão das emoções, do stress e de outros comportamentos-problema"; pois, desde a sua criação, a psicanálise acolhe o que não é educável e toma forma insurrecional, seja no corpo falante – o sintoma -, o no corpo social – sob outras formas sintomáticas. Assim, hoje é localizável com mais clareza a frente de batalha entre a American Psychiatric Association, por um lado, que tenta, nas suas últimas versões do DSM, fundir no mesmo todo os sintomas do corpo falante – sofrimentos e queixas do sujeito – e os sintomas do corpo social- que vem perturbar o modo capitalista de produção de cidadãos-consumidores e, por outro lado, os psicanalistas que, com Freud e Lacan, continuam fazendo existir no presente a fenda que a descoberta do inconsciente abriu na subjetividade. Mas quantos regimentos tem a psicanálise para essa batalha? Muito poucos, levando em conta as forças que se opõem, mas muitos, levando em conta a arte experimentada de cada um de seus "agentes"; arte que aprendeu "no seu corpo" (segundo Freud no prefácio da obra do August Aichhorn Jóvenes abandonados) para saber utilizar a divisão subjetiva em todos os níveis em que ela se manifeste: Atrás dos belos discursos da afirmação de si mesmo, a hiância do ser; atrás dos preceitos morais mais estritos, o pequeno gozo vergonhoso; diante das desgraças cruéis do destino, a acusação impiedosa do outro.

A psicanálise, quando se aplica a crianças que sofrem, é como uma placa sensível na qual se imprimem estes restos ineducáveis que os psicanalistas e os praticantes analisados consideram com todo o respeito que a esses restos lhes é devido, pois eles são, precisamente, a parte do sujeito que escapa à sujeição total ao Outro e que devém, dessa forma, a parte mais preciosa.

Hoje podemos, graças à Orientação Lacaniana impulsada por JAM, definir precisamente o lugar que ocupa a psicanálise com crianças. Este lugar se define estritamente como os tempos e lugares em que psicanalistas e intervenientes "analisados" acolhem os sofrimentos, as queixas, as diversas perturbações do tempo da infância como sintomas, isolando, com a criança e seus pais, as palavras que trazem e os objetos que contam. Certamente, somente o tratamento analítico com a criança permite demonstrar como esta operação morde no que, no sintoma, se manifesta como menos ou como demasia, como déficit ou excesso. Firmes no e por esse saber surgido da sua própria experiência, educadores, docente, equipe de saúde, profissionais ou pais têm o poder de fazer existir esses lugares nos quais o saber da criança e seu sintoma são respeitados.

Corresponde às Escolas e as redes do Campo Freudiano dar a estas experiências a audiência que elas merecem e fazê-las transcender mais longe.

O que você nos pode dizer sobre como impactam na prática analítica com crianças, as surpresas inclusive os escândalos, que produz a associação da ciencia, a técnica e o mercado ? Por exemplo, há crianças na edade escolar que dizem aos seus pais que não irão mais à escola, porque o que querem saber conseguem no Google. Não se trata só do impacto na prática analítica. A vida mesma das crianças e seu lugar no mundo mudou.

Efetivamente, as "Marcas" tomaram facilmente o lugar das insígnias do ideal para os jovens; os diferentes gadgets se beneficiam com a cumplicidade dos trajetos pulsionais para tornarem-se quase extensões corporais; a destreza exigida pelos videogames encontrou apoio no supereu (contra o apoio do supereu) para impor seu desenfreio e gula cotidianos, para pena dos pais. O acontecimento do sintoma que eu assinalava como o objetivo primeiro da psicanálise foi substituído com frequência por um "acontecimento de gozo", buscado como tal e que satura a subjetividade. Entretanto, se constata algo: esse excesso de gozo que se agregou ao corpo falante e o faz calar, deve localizar-se, nomear-se, gastar-se de alguma maneira. O que pode conduzir a um jovem ao pior e inscrever-se no corpo e no social com traços estragantes, resulta ser também uma possibilidade para quem está o suficientemente conectado com seu desejo e seu mais-de-gozar para fazer valer diante da criança que vale a pena voltar a conectar-se com os ideais frágeis de seus pais, e coloca de novo em jogo com um novo parceiro os diversos objetos de seu "mobiliário pulsional" pessoal e o não consentir a deixar-se regular por uma vontade de gozo desencarnada.

Há uma forte concorrência, e as crianças deste século estão confrontadas com novas responsabilidades; agora que já não estão protegidas pela "infância". Razão suficiente para não abandoná-las.

Lemos com interesse a experiência no Laboratório búlgaro Crescer sem pais, a partir do seu texto : Como finalizar ?, que foi publicado em castelhano pela Editora Grama, no voluma A prática lacaniana em instituições. O que você pôde extrair sobre os impasses da criança hoje e seus arranjos ? Você poderia nos contar algo mais sobre o "método búlgaro", como você chama nesse texto ?

Ensinou-me muitas coisas e também aos colegas que me acompanharam e seguiram nesta aventura.

Vou contar-lhes a história da "A princesinha dos prendedores". É uma menininha que foi abandonada em um orfanato, duplamente abandonada: pelo seus pais e por quem devia ocupar-se dela. É assim que, quando completa 4 anos, é descoberta pela nova equipe que dirige a instituição: ela não sabia caminhar nem falar. Seu único companheiro era o chão, com quem intercambiava algum sinal sonoro. Começamos a ocuparmos dela; ela aceita, e isto é um milagre, pois se bem não perdeu toda a esperança na espécie humana, o chão possui toda a sua preferência; é seu refúgio. Um dia, a enfermeira decide subir com ela ao terraço, ali onde se pendura a roupa lavada. Há lindo clima, é primavera, há que aproveitar! A menininha (que não responde quando a chamam pelo seu nome) jamais deixou seu piso e sua sala, nunca viu o céu, com suas nuvens e seu sol sobre a sua cabeça, nunca sentiu o sopro do vento na sua pele. Então, grita, se agarra na pessoa que a levou em seus braços, seus olhos se transtornam, sacode a cabeça intensamente. De repente, maravilha! Entre ela e o céu tão vasto, tão azul, se isola um objeto estranho e admirável feito de dois pedaços de madeira (Ah, meu chão) bem unido por um troço de arame. Um prendedor sujeito ao arame, que ficou ali casualmente, quando elas entraram, em um momento, a roupa seca.

Ela estendeu a mão, a enfermeira se deu conta da importância desse encontro, e eis aqui o prendedor morno no espaço da mãozinha. Ela não grita. A partir deste momento, a menininha tem um objeto de múltiplos usos: com o prendedor raspa o piso, leva-o quando vai comer, se serve do prendedor para beliscar as outras crianças e fazê-las gritar. Não se separa dele. Ultimamente todos estão um pouco fartos do assunto, mas o que podemos fazer? Si o tiramos uiva, entra em crise, horror"

A enfermeira nos conta do achado, diante de Sofia, rodeada de seus colegas e de outros colegas de outros orfanatos. Primeiro ato: a batizamos de "Princesinha dos prendedores". Tal será seu nome durante o tempo em que estiver no orfanato. Buscamos com as pessoas que trabalham na instituição como domesticar esse terrível prendedor, como ensinar-lhe a comportar-se como um prendedor educado. Isto é bastante complexo pois há um estado danoso do prendedor, quando está separado em dois pedaços de madeira, e outro estado "beliscante" do prendedor quando já não está dividido. Elaboramos uma dialética: os prendedores inteiros estarão a sua disposição no terraço, com a lavandeira, a quem a princesinha irá ajudar. Haverá um único prendedor cindido, que será preciosamente guardado num pequeno sachê como um tesouro privado, subtraído à avidez dos pequenos semelhantes.

A enfermeira transmite à menininha o seu novo nome, adotado pela equipe; cada uma das pessoas que intervêm na instituição se surpreende falando a um prendedor para ensinar-lhe a comportar-se e à princesinha para que cuide dos prendedores. Ela nos ensinou que uma nominação nova, o engate "aditivo" a um objeto prevalente são suscetíveis de mobilizar o gozo do UM, invasor e paralisante, para o difratar em pedacinhos (de madeira), e que uma vez que o sujeito adota esse processo, então os ("humanjereados") "trumains presentes são capazes de pôr um grão de areia para complicar o sistema e de pôr seu grão de sal para ampliar suficientemente a lalíngua para acolher uma princesinha de prendedores.

Por que não tentar com outros nomes e outros objetos?

Muito obrigada Daniel !

Daniel Roy, psicanalista em Bordeaux, França, membro da ECF e da NLS, delegado da NLS e da AMP para Europa ORIENTAL. Secretario Geral do Instituto da Criança da Universidade Jacques Lacan. Assessor externo de Rayuela.

NOTAS

  1. Neologismo homófono que Lacan introduz em seu Seminário 25 (27/1/78). Les trumains é homófono em francês de l´étre humain, o ser humano em castelhano. Nele ressoa também o trou – furo – do inconsciente e dos furos do corpo.