DA FAMÍLIA MODELO ÀS MODALIDADES DE FAMÍLIAS
_Irene Greiser

A atualidade se encontra atravessada pelo que chamamos o declínio do reino do Um. Quando declina a autoridade do Um, a multiplicidade e a diversidade tomam seu relevo. Lesbianismo, transexualismo, transgênero, gays, bissexual, alosexual[1], homossexual, heterossexual, drag, queer, são todas elas formas que aludem a essa diversidade que escapa à rigidez da norma heterossexual.

Famílias reconstituídas, heterossexuais, homossexuais, monoparentais, dão conta do espaço ficcional que é a família.

A questão da diversidade sexual entra pela mão dos movimentos feministas, que se opõem ao binarismo fálico – castrado. A natureza agora pode ser recusada pelo direito às escolhas sexuadas, por exemplo, através da redesignação de sexos. É uma interrogação que se abre para nós, psicanalistas, a respeito dessa associação médico-jurídica nos usos do corpo.

Nunca se escutou tão massivamente se afirmar às crianças, desde muito pequenas, a certeza de que elas são meninas ou o inverso. Tratam-se de escolhas precoces de gozo?

A partir dessa casuística frequente, o transexualismo se constitui em um espaço de investigação clínica para os psicanalistas.

O transexual diz que nasceu em um corpo equivocado, mas cabe a pergunta: quem nasceu em um corpo adequado? O que ocorre com os corpos no estado atual da civilização, na qual se impõe a cultura do "auto" e do "você tem direito"?

Os corpos são entregues ao auto engendramento, sem marcas que provenham de traços tomados do campo do Outro. Esses corpos tatuados, marcados com piercings, dão conta de um real que não se apresenta ordenado pelo semblante do Nome do Pai. Mudar de sexo se torna algo tão banal como fazer uma tatuagem, ou extirpar um sinal.

Dinamismo jurídico da sociedade: Lei de Identidade de Gênero
A aliança entre os sexos já não é a mesma. Eric Laurent assinala que se trata de um dinamismo jurídico da sociedade. Esse dinamismo se baseia no fato de que há novas demandas que não se orientam pela tradição. O discurso do direito e o discurso da ciência convergem para autorizar ou permitir o novo.

As leis de Identidade de gênero (que inclui a redesignação de sexo), o casamento igualitário, a lei de adoção e as legislações a respeito da fertilidade assistida, afetam diretamente as novas configurações familiares com as quais uma criança convive hoje em dia. Farei referência à lei de Identidade de gênero porque considero que aqui um psicanalista pode trazer contribuições ao terreno jurídico ou, ao menos, esse tema merece uma atenção por parte dos analistas.

Que diz a lei?

A lei de Identidade de Gênero argentina, sancionada no ano de 2012, com o número 26.743, estipula que, em caso de tratar-se de um adulto que quer modificar seu documento de identidade ou submeter-se a uma operação de redesignação de sexo ou solicitar um tratamento hormonal, o consentimento do sujeito é suficiente. É o que se denomina consentimento auto informado. A partir de 16 anos o sujeito já pode solicitar a mudança de sexo.

Para a lei de redesignação de sexo trata-se da autopercepção do corpo, ou seja, se o sujeito se auto percebe de acordo ou não com seu sexo biológico.

No caso do menor, a lei só legisla em relação à identidade e não é clara a respeito da idade na qual se pode solicitar a mudança de Identidade. Inclusive, se um dos pais não consente com isso, o juiz mesmo assim pode outorgar-lhe a mudança de identidade. Ou seja, fica sob o arbítrio do juiz.

Há juízes que relatam uma controvérsia interna à própria lei no que toca à Identidade de Gênero. A lei de Identidade de gênero, para a mudança de identidade com relação ao sexo, não requer um processo de provas nem de argumentos, como a lei costuma pedir para outros casos de mudança de identidade cujas motivações não sejam por questões de gênero.

Na Argentina os sujeitos são inscritos de acordo com o binarismo homem ou mulher. A lei não os inscreve como trans, nem como alossexual, nem bissexual. Um homem biológico pode inscrever-se como mulher, mas não como drag, bissexual ou alossexual.

O 'sem lei' que, para a psicanálise, rege a união sexual, hoje se transferiu ao terreno jurídico, através da legalidade a respeito das uniões do mesmo sexo que, na Argentina, se denominou lei do casamento igualitário. Esse avanço no nível legislativo é congruente com nosso axioma lacaniano da não relação sexual.

Mas também esse 'sem lei' é congruente com o estado atual da civilização, a chamada feminização do mundo, essa entrada em um mundo do ilimitado. Não se trata da ascensão das mulheres ao poder mas da entrada, tanto para homens como para mulheres, em um mundo do ilimitado.

A atividade política dos movimentos feministas, a ideologia dos Direitos Humanos e os avanços técnico-científicos, através das técnicas de reprodução assistida, contribuíram para esse estado de coisas.

Pareceria que todo o auto se impõe: o auto informado, o auto percebido do próprio corpo, como se encontra estipulado pela lei, dão uma ideia do individualismo contemporâneo.

Lacan situou a psicanálise em posição de escoltar a ciência. Escoltá-la de um bom modo implica não hastear sua bandeira, portando os estandartes de um empuxo ao corte cirúrgico ou os pseudo progressismos no nível da igualdade ou da liberdade de expressão. A psicanálise é incompatível com os todismos massificantes.

Esta cultura do auto, do "Eu sou", está instalada no estado atual da civilização. O sujeito pode auto perceber-se, auto informar-se, afirmar seu eu independentemente do Outro. O sujeito se converte em empresário de si mesmo.

A meditação cartesiana foi modificada. "Cogito ergo sum" hoje se transformou em um "Sou sem pensar" e cabe ao analista instaurar a via do pensamento, que sabemos que se trata do inconsciente, onde o sujeito não reconhece seu ser. Onde penso, não sou e onde me enuncio através do sou, não penso.

Os analistas bem sabemos que a imagem do corpo se forja a partir de um Outro especular, como também que ninguém é idêntico a si mesmo mas, acima de tudo, que a criança pode ficar identificada e realizar o fantasma do Outro materno que, muitas vezes, pode chegar até a pedir a castração real. Para a psicanálise, a assunção sexuada depende de um processo, ou seja, se efetua em um tempo e se decide na puberdade, quando o sujeito vai à dimensão do corpo do Outro. Esse tempo não é cronológico, mas lógico.

Lacan, em "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada"[2], propõe uma temporalidade que é lógica. Trata-se de um enigma que cada um dos prisioneiros deve decifrar para resolver sua identidade, cabendo ao diretor do presídio lhes dar a liberdade. Cada um tem um disco em suas costas, branco ou negro, ou seja, cada prisioneiro sabe o disco dos outros, mas não o seu próprio. Mas embora cada um conclua na solidão, já que não é um trabalho em equipe, ali se coloca em jogo uma lógica coletiva. O sujeito conclui sozinho, mas não o faz sem os outros. Entre o instante de ver e o momento de concluir, há um tempo para compreender, que Lacan diz que é variável.

Servimo-nos desse texto para pensar a lei da Identidade de Gênero, especialmente nos casos em que o sujeito escolhe a intervenção cirúrgica para a mudança de sexo (o que pode ser feito a partir dos 16 anos), baseado apenas na informação de seu próprio consentimento. Podemos assim colocar que a partir do instante de ver, em que o sujeito se auto percebe como mulher sendo homem, a lei possibilita que se salte o tempo para compreender. De fato, a lei não obriga que o profissional interveniente, neste caso o cirurgião, solicite um exame psicológico (como terapia do dizer), previamente à intervenção cirúrgica ou aos tratamentos hormonais. No entanto, os médicos solicitam entrevistas prévias e, em muitos casos, os sujeitos optam por renunciar à operação de mudança de sexo.

Todas as diversidades sexuais, que se multiplicam em uma série que parece não ter um limite, o são a partir das nomeações: transsexual, transgênero, alossexual, bissexual, homossexual, lésbica, queer, drag etc.

O estado atual da civilização facilita um discurso, que chega à criança e aos pais, de que não se deve proibir nem classificar e, assim, se um bebê se disfarça de menina não se deve limitá-lo.

Uma questão são os avanços que tanto gays, lésbicas, travestis e transsexuais podem conseguir, como conquistas ao nível dos Direitos Humanos, assim como todas as minorias, inclusive a dos trabalhadores sexuais, e outra questão é a leitura que podemos fazer a partir da psicanálise quanto à sexuação em jogo.

Uma série de interrogações se abrem a partir destas novas leis. Com a promoção de todo auto, começamos a considerar a criança como senhora e empresária de si mesma, a criança é dona de si mesma para a mudança de identidade. Não entramos assim não somente na infância medicalizada, mas também na infância judicializada? A lei permite ao sujeito criança a livre escolha do sexo ou essa liberdade o impede de escolher? Pode-se pular esse tempo para compreender? Há tantas escolhas ou será que não saímos de homem ou mulher? Por isso acredito que podemos falar de uma certa banalização do sexo. Em nome dos Direitos Humanos corremos o risco de acabar rechaçando a inscrição sexuada. De fato, a lei inscreve homens ou mulheres, e é possível não respeitar o destino anatômico, mas a lei não inscreve alossexuais, travestis, drags, bissexuais, ou seja, não inscreve comunidades pela prática de gozo.

Do menu fixo ao menu à la carte. Banalização do sexo?
Para Freud, masculino e feminino seguem a partição fálico-castrado a partir do atributo fálico e, para Lacan, desde as fórmulas da sexuação, a partição será de acordo com as modalidades de gozo na qual se inscreve o lado masculino como todo no gozo fálico e, do lado feminino, a inscrição será não-toda no gozo fálico. E leva-se em conta que, mais além do sexo biológico, o sujeito pode escolher inscrever-se de um lado ou do outro.

Podemos estabelecer uma relação entre o declínio do nome do pai e o declive da virilidade e a feminização do mundo.

Torna-se necessário distinguir o não-todo do gozo feminino. O gozo feminino é ilimitado e sem lei mas, com o não-todo, Lacan propõe um modo diferente de inscrição na lei, as mulheres não ficam fora da lei, entram nela, mas como não-todas. Uma das consequências do não-todo é que, se não há um que diga não, que se localize como exceção, como há para a partição masculina, cada um poderá querer ser sua própria lei e aí poderemos passar à ditadura do um por um. Crianças amos que batem em seus pais, que denunciam seus professores, homens amos que batem em suas mulheres, pais que abusam dos filhos etc., são os sintomas do atual mal-estar contemporâneo. Esse real sem lei aparece nu e sem véus, como resultado da queda dos semblantes.

Já não há um menu fixo, há um menu à la carte. Do menu fixo da época do reino do Um passamos ao menu à la carte que aloja a diversidade de menus em matéria sexual. A época do maio francês, cujo slogan era proibido proibir, promoveu o sexo livre, a época atual, onde tudo parece estar permitido a partir da ordem médico-jurídica, não traz com ela uma liberação sexual, mas justamente essa liberdade coloca em manifesto uma banalização do sexo. O curioso é que, em uma época em que não se proíbe o gozo e além do mais se exige que se o mostre sem véus, o que a clínica nos coloca em manifesto é o escamoteio no que diz respeito aos encontros sexuais.

Em nome dos Direitos Humanos corremos o risco de a inscrição sexuada se confundir com a queixa reivindicativa de direitos das minorias. A lei não inscreve comunidades pela prática de gozo.

As relações entre a Psicanálise e o Direito são possíveis ali onde um discurso pode interrogar o outro.

Não se trata de negar os avanços médico-jurídicos, senão de fazer um bom uso deles, levando em conta que alguns sujeitos se encontram desabonados do inconsciente e a clínica psicanalítica demonstra que ter um corpo de mulher pode ser o modo que o sujeito encontrou de fazer-se um corpo e sentir que tem um corpo. Como também deve-se frear o empuxo à ameaça de corte em um menino que diz ser uma menina. Em última instância, sempre se trata do um por um.

AP de la EOL y miembro de la AMP.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Lacan, J. "Os complexos familiares na formação do indivíduo". Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003
  • Lacan, J. "O estádio do espelho como formador da função do eu". Em: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998
  • Lacan, J. "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada". Em: Escritos, ob.cit.
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  • Miller, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires, Paidós, 2005.
  • Miller, J.-A. "Cosas de familia en el inconsciente". Em: Mediodicho 32, Revista Anual de Psicoanálisis, 2017.
  • Torres M., Shnitzer G., Antuña A. Peidro S.(compiladores). Transformaciones, ley, diversidad, sexuacion, Buenos Aires, Grama Ediciones, 2013.

NOTAS

  1. Nata da tradutora: o termo alossexual engloba todos que sentem atração sexual, sendo o oposto de assexual.
  2. Lacan, J. "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada". Em: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

Tradução: Gricel O. Hor-Meyll
Revisão: Maria Inês Lamy