ENTREVISTA COM ÉRIC LAURENT

Gustavo Stiglitz: Duas questões nos chamaram atenção com o Comitê de Rayuela, quando líamos seu artigo " A psicanálise se cura da transferência?" , publicado em Lacaniana. Você diz duas coisas que são muito importantes. Pergunta se a criança poderia estar diretamente em relação com a posição feminina da mãe e não duvida em dizer que sim, tomando o exemplo das fixações precoces com respeito à sexuação infantil. Por outro lado afirma – em conexão com a pergunta anterior – "que é inteiramente enquanto objeto a que se produz o quiasma e a junção entre a posição da mãe e da criança que ocorre diferente da metáfora paterna clássica, esta pela via do significante, da metáfora. Parece-me que há relação entre essas duas afirmações. Você pode nos dizer algo mais sobre isso? Por outro lado, está a ideia de que é difícil abandonar o amor do pai, o sentimento amoroso ao pai, quer dizer, um movimento que vai para um "sem pai" aparentemente mas ao mesmo tempo algo disso se mantem. São afirmações que exigem todo um apanhado para poder chegar a isso e , por outro lado, que consequências se pode extrair?

Eric Laurent: Muito bem, excelentes perguntas... e me parece que remetem muito aos problemas que nos levanta a clínica de hoje e os instrumentos que nos deu Lacan para aproximarmos precisamente do momento atual da civilização que muda certamente a clínica em geral e a clínica das crianças em particular. Esta foi muito reconsiderada, transformada por todas as mudanças que afetam a família no século 21. Especialmente na Argentina, depois das leis recentemente sancionadas e que fazem desse país um laboratório de investigação.

Não se poderá dizer apenas que a Argentina é o único país do mundo no qual a psicanálise tem um lugar mais importante mas também creio que se deve investigar as consequências das leis que redefinem um regime da família de maneira que interessa a todos.

G.S. Você participou ali do debate do Caso Lulu.

E.L. O Caso Lulu e tudo que veio a seguir. O Caso Lulu é a andorinha que anuncia a primavera. Contrariamente à sabedoria, que segundo Hegel, só alça voo no final do dia, podemos dizer que a Psicanálise pode também alçar seu voo no início mesmo desses fenômenos de transformação que vão reinterpretar, redefinir a clínica.

Efetivamente creio que Lacan, em seu último ensino ou na báscula de seu ensino tomando suas distancias com a metáfora paterna, nos dá instrumentos novos para indagar sobre a clínica do que chamei os momentos de sexuação precoce ou o modo segundo o qual a criança se define como objeto a.

A metáfora paterna permitiu a Lacan logificar o Édipo freudiano, incluir os avanços de Melanie Klein com respeito à incidência da mãe sobre a criança com a significação fálica, permitiu reordenar isso tudo. Como diz em suas "Notas sobre a criança", o interesse da metáfora paterna permite ver como a criança se define como um sintoma, como uma formação de compromisso, sintoma do casal. Mas opõe a isso algo que está fora do alcance da metáfora paterna que é o momento em que a criança se engancha diretamente com o fantasma materno, e faz uma lista muito interessante de temas que eram um regime novo de investigação, na qual considera o que ocorre quando a criança vem a ser no real o objeto de satisfação da mãe, o que desloca certamente tudo que era o sistema freudiano da significação fálica da criança. Esse foi o final dos anos 60. Mas depois dos anos 70, Lacan foi ainda mais além, redefinindo uma posição do pai, não separando os registros da criança sintoma do casal e a criança com enganche direto com o fantasma, mas um pai que se define a partir da criança como objeto a da mãe.

GS: E não haveria também uma criança em relação direta com o sintoma da mãe? Isto é, não como objeto que realiza o fantasma, mas em relação mais direta com o sintoma da mãe sozinha?

EL: E isto, efetivamente se poderia agregar se tomamos melhor o sinthome da mãe como mesclado ao sintoma fantasia.

GS: E não daria casos de psicoses.

EL: Precisamente uma das consequências seria engrandecer muito o binário um pouco estúpido ou reduzido de neurose-psicose especialmente na clínica das crianças. Este binário parece muito de outra época quando temos hoje um leque que se abre. Lacan inclui, debilidade, handicaps, perguntas sobre o autismo. Abre o leque muito mais. Já em 64, no final do seminário 11, fala para responder a Mannoni que precisamente estava um pouco mais ligada à psicose-neurose como única alternativa, dizendo como se introduz a noção de debilidade. Bem, são complicações às quais nos introduziu Lacan para poder efetivamente ver como instrumentos que permitem indagar sobre o que se abriu do leque. Efetivamente a definição do pai como nos anos 70, como o aquele que se encarrega, o que se ocupa com cuidados paternos dos objetos a da mulher que ama desloca muito o assunto. Precisamente nos permite dar instrumentos para indagar sobre os fenômenos que eram muito limitados nos 60,70 do século passado e que agora ocupam um lugar muito mais amplo. Então, temos efetivamente as perguntas que você faz, sobre estimular uma certa indagação.... sobre as consequências, sobre o que é o enganche direto com o fantasma da mãe. Poderia acrescentar como você sugere, o sintoma da mãe discutindo o sintoma e suas consequências. Vemos que tudo isto abre, efetivamente, um campo de investigação, no qual temos muito mais entre o céu e a terra do que há nas classificações um pouco limitadas e precisamente a utilidade de recolocar a clínica em outros lugares como a clínica da particularidade do enlaçamento, do nó em um sujeito. Isso dá muitas coisas interessantes.

GS: Sim, por exemplo, pensar nas versões efetivas, como você diz, do pai. Não o pai como uma essência, mas que vai funcionar ali efetivamente como tal.

Parece-lhe que se poderia falar também de versões efetivas do analista? Que daria uma prática mais homogênea com esta nova forma de pensar a relação entre a mãe e a criança, entre o casal parental e a criança...

EL: Mas é claro, creio que a maneira pela qual o analista pode vir a presentificar na análise o enigma do objeto a, digamos, isto ocorre de maneira mais efetiva à medida em que se desfaz dos preconceitos que implicam a clínica classificatória sem sua correção. Não quero dizer "temos que esquecer completamente a clínica classificatória da época da metáfora paterna", mas esta clínica tem que ter uma correção, algo que nos permita abrir muito mais o campo.

GS: Quando se refere às fixações precoces, o mais além do falo, em alguns casos na sexuação infantil, este mais além do falo é o mesmo que sem o falo?

EL: Há que se discutir, não está escrito nas estrelas, mas há coisas que são sem o falo, dependendo do modo como se o define. Entretanto, nenhum fenômeno no campo analítico se define sem a presença do gozo não negativizavel, que Lacan pode notar como função fálica. Então, há que discutir qual é o sentido que damos ao falo. Da mesma maneira que Lacan desconstruiu o pai freudiano entre o pai simbólico, imaginário, real, sua introdução na metáfora paterna, etc., da mesma maneira o falo se diz em muitos aspectos e temos que precisar em que sentido se usa. Da mesma maneira que, por exemplo, Jacques Alain Miller em sua Teoria dos Gozos, texto dos anos 80 quando fala do gozo fálico como algo que vem a transtornar o gozo corporal depois do seminário 23 é outra definição do gozo fálico. Então sem o falo pode ser com o gozo fálico entendido nesse sentido.

GS: Sem o falo seria no sentido tradicional do primeiro ensino.

EL: No sentido do que é o falo como operador simbólico que vem precisamente sublimar o que é imaginário da diferença dos sexos.

GS: E em que essas fixações precoces não são identificações a um traço da mãe, por exemplo, uma identificação a algo da posição feminina da mãe?

EL: Teríamos que discutir em quais casos isto se pode deduzir da posição materna e do traço, se algo da mãe articulado ao pai ou não, forcluído ou não. E depois, dentro disso, se em todos os casos é suficiente considerar qual é um melhor mecanismo lógico forclusivo , sem considerar o retorno do gozo sobre o corpo, e como precisamente entrar nesta clínica tão sutil entre transgênero, entre a fixação dos casos quando se pode considerar de que maneira no ano e meio se pode definir uma certeza de gozo no sujeito. Abre muitas perguntas: como isto se pode deduzir da posição materna? Teríamos que fazer uma investigação precisa, se se pode fazer e ver essas fixações no ano e meio, dois anos e meio, casos comentados na clínica desta zona, de como se passa da clínica do transgênero a uma clínica do travesti, ou de uma homossexualidade mais ou menos lábil, etc.

Poder captar algo disso, de como se articula, ou se se define de uma maneira que escapa a isto e que, portanto, não é sem uma relação ao gozo autoerótico da criança, poderia digamos, abrir uma discussão precisamente, com os que dizem que estas posições são tão precoces que então só podem ser herdadas, ou ter uma determinação estritamente biológica.

GS: Neste ponto talvez seja mais difícil prescindir do amor ao pai, no sentido que é difícil prescindir da idéia de um elemento que venha a descompletar a mãe ou não.

EL: Lacan tratou no seminário 23 de introduzir um elemento para passar-se da estranha primeira identificação freudiana que produz o amor ao pai. Algo religioso em Freud.

GS: No 36, em "Complexos familiares" ele se pergunta pelo misterioso sentimento de paternidade e no final se pergunta o que é, não é textual, mas se pergunta o que é esta função mais além do pai, o que é servir-se disso. E, nesse sentido não se deixa de prescindir, se deixa de prescindir da essência, mas não das versões efetivas.

EL: Efetivamente. E esse final onde Lacan fala do analista posjoyceano também abre um campo de investigação.

O problema é como passar do nível de um caso de hospital para ter uma idéia sobre o que seria uma intervenção analítica sobre os casos. Há que examinar esta clínica e ver se se pode extrair ou não uma ideia analítica como tal. Isto, no momento, é o que não se demonstrou.

GS: Bem, muito obrigado Éric.

EL: Seguiremos investigando essas questões.

NOTAS

  1. LAURENT, E. El psicoanálisis se cura de la transferência? Buenos Aires, Revista lacaniana 18, EOL 2015, 181.
  2. LACAN,J. Nota sobre a criança [1969]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: J.Z.E, 2003, p. 369.

Tradução: Lucia Maria de Lima Mello.