A FUNÇÃO DO FALO: MISTIFICAÇÃO VS LÓGICA [1]
_Vilma Coccoz

Em distintas passagens dos Escritos, encontramos preciosas indicações a respeito da novidade que trouxe consigo, a descoberta de Freud relativa à sexualidade humana. Assim, no marco de um retrato muito singular do inventor da psicanálise, como homem de desejo, Lacan não duvida em compara-lo a um iniciado nos antigos mistérios.[2] E isso, na medida em que “Freud formulou a primazia do falo e isolou a função decisiva de um objeto que não é um entre outros, que não é o órgão, mas sua forma, sua imagem erguida, (...) como revela o simulacro antigo”[3]...

Se sua verdadeira função, acrescenta Miller, não foi esclarecida – como se poderia pensar intuitivamente -, pelo caminho da sexualidade masculina, mas ao vinculá-lo à sexualidade feminina, onde o falo revela sua “força negativa” e cuja demonstração clínica se afiança no caso da jovem homossexual.[4]

Mas, o descuido da lógica inerente ao complexo de castração pesou sobre seus emissários e condicionou o exercício de “uma disciplina que havia restabelecido a ponte que une o homem moderno aos mitos antigos.”[5] Tal descuido teria como consequência, um grave desvio da prática no “concerto analítico” pós-freudiano, manifesto no fato inquestionado de “relegar à sombra, esta função de falo”, reduzindo-o ao papel de “objeto parcial” do desejo, assinalando-o como tal, nas interpretações.

Lacan considera este fato, um efeito da mistificação profunda, na qual a cultura mantém seu símbolo. Pontualmente, afirma que o paganismo não o produzia senão ao final de seus mais secretos mistérios.

Em sua conferência sobre O inconsciente e o corpo falante, Jacques-Alain Miller constata que, na atual difusão planetária da pornografia (salvo no pornô lésbico), e ainda apresentando uma vacuidade semântica sem precedentes, a adoração do falo continua sendo um episódio central.

Perfila-se, então, uma alternativa: ou se esclarece, com Lacan, a lógica fálica e sua operatividade clínica ou se contribui para sua mistificação, cujas nobres origens vale a pena conhecer, a fim de conferir a relevância que merece a definição do inconsciente que encontramos no Seminário XX, no curso do qual Lacan apresenta o limite do universal fálico: “o inconsciente é o mistério do corpo falante.”

 

O falo como símbolo e como significante

Quando se alude à função do falo nos Antigos mistérios, se faz referência aos ritos de iniciação anuais dedicados a Deméter, a deusa da vida, da agricultura e da fertilidade, e a sua filha Perséfone, ritos que tinham lugar em Elêusis, a poucos quilômetros de Atenas. Uma prática que se estendeu durante dois mil anos e cujos segredos continuam hoje em dia, ocupando os estudiosos e suscitando suas interpretações. Só transcendeu um documento escrito a ele referido, é o Hino homérico à deusa.

Os mistérios eleusinos se vinculavam ao mito protagonizado por Deméter, que, segundo algumas versões, por descuido, e segundo outras, por vergonha, abandonou seus deveres no Olimpo e errou, desesperada, durante nove dias, procurando sua filha, sequestrada por Hades, o deus das trevas, que, cativo dos encantos da garota, a havia arrebatado, levando-a consigo para as escuras profundezas. Assim, as flores murcharam, os campos se cobriram de neve e a fome se estendeu durante o frio inverno, semeando a desolação.

Em sua peregrinação, acabou a deusa vestida como uma anciã do campo em Elêusis, onde foi acolhida pelo hospitaleiro rei Célio e sua esposa, que a confiaram a seu filho Demofonte, também conhecido como Triptólemo. Às escondidas, Deméter lhe prodigava cuidados divinos, com a intenção de torná-lo imortal. Descoberta um dia nesses empenhos pela mãe do jovem, se viu obrigada a confessar sua verdadeira identidade.

Entretanto, Zeus foi convocado a restaurar a ordem universal perturbada pela imprudência; a terra havia se tornado estéril, inclusive os deuses se inquietavam diante da escassez de oferendas e atributos por parte dos mortais. Interveio, então, o Rei do Olimpo, persuadindo seu irmão Hades, a restituir sua esposa Perséfone a sua mãe.

Hades voltou a si, ainda que seu caminho de regresso logrou tentá-la com uma apetitosa romã, o alimento dos mortos que a vinculava, para sempre, ao submundo. Finalmente, os Olímpicos chegaram a uma solução de compromisso: Perséfone retornaria durante oito meses à terra, durante os quais, esta resplandeceria de frutos e flores, para ir-se até o leito conjugal durante os meses restantes, durante os quais se propagaria a seca e o gelo de inverno.

Os ritos foram estabelecidos por Deméter em Elêusis, em agradecimento à generosa acolhida que lhe prodigaram sua gente; celebravam o regresso de Perséfone e, com ele, o ressurgir da fertilidade e da vida. Confiou a deusa mãe a Triptólemo, o segredo da arte da agricultura, a fim de que ele pudesse transmiti-lo aos atenienses. Em um baixo relevo do século V a.C. que se encontra no Museu de Atenas, se pode ver a figura do adolescente recebendo de ambas as deusas, uma espiga de trigo, a qual, como é sabido, faz parte da semântica fálica.

Qualquer pessoa que falasse grego, fosse homem ou mulher, qualquer que fosse sua condição social - incluindo estrangeiros e escravos -, podia solicitar ser iniciado nestes mistérios, os mais importantes, devido ao saber transformador que se obtinha de tal experiência. Dividido o percurso iniciático em mistérios menores e maiores, associavam-se os últimos a santas orgias, a danças sagradas. Os iniciados se comprometiam a guardá-los em rigoroso segredo, gravando sobre sua transgressão, a pena de morte.

Sendo os mistérios tão acessíveis a qualquer ser falante, resultaria quanto menos surpreendente que pesasse sobre eles, tal proibição e tamanho castigo pela infidelidade. Mas, se considerarmos, com Lacan, que a iniciação aproximava as pessoas da simbolização da segunda morte, isto é, a um ritual de subjetivação da mortificação do corpo pela ação do significante, então é possível captar a lógica encoberta pela mistificação: este véu impede a revelação do significante, ao qual se enoda o sentimento mais íntimo da vida, segundo a definição que encontramos em Uma Questão Preliminar.

Uma representação deste nó pode ser apreciado no afresco da Villa degli Misteri de Pompeya; no momento em que se levanta o véu, deixando ver a imagem ereta, o demônio alado do pudor, ameaçador, levanta seu látego.

A imagem suprema esconde toda uma articulação significante: o falo lacaniano é um semblante porque tem por trás, o significante representado pelo látego que mortifica o corpo. O afresco pompeiano traduz, em uma figuração pictórica, a mortificação do logos que imprime a falta-a-ser no vivente. O ser-para-a morte pode ser, então, ignorado através da mistificação do ser-para-o sexo. O significante ímpar da libido se distingue de um mero símbolo, porque é efeito de uma rede ou de uma cadeia, na qual se articula o desejo, e não de uma imagem cuja referência seria o pênis, quer dizer, um objeto parcial recortado do corpo.

Assim, inspirando-nos na biologia lacaniana de Miller e seguindo os desenvolvimentos de Lacan no Seminário VI, entendemos que a iniciação nos Antigos mistérios produzia uma mudança nos desejos dos seres falantes; sua existência deixava, então, de ser “natural”, para situar-se sob a égide da morte antecipada e significada pelo segredo, a mesma que invade a vida e remete, não à biologia, mas à lógica significante.

É a razão pela qual, Lacan nos adverte que, na falta de captar a lógica do falo, - imprescindível para orientar-se e operar adequadamente na clínica -, só se cultiva sua mistificação.

 

A explosão do gênero e suas tentações

Na introdução de seu texto Kant com Sade, Lacan descobre a secreta topologia do gozo, que vincula o tocador sadeano à razão kantiana. Ali, ele faz referência ao percurso de cem anos que foi necessário transitar “nas profundezas do gosto”, para que a via de Freud fosse praticável.

Outros cem anos transcorridos desembocaram na explosão do gênero. Se a psicanálise não é alheia a este fenômeno, é certo que sua difusão planetária pode ser lida - seguindo Miller - como uma real-ização do discurso universitário, isto é, um discurso sobre o gênero, cujo produto é o sujeito vazio de identidade, (S/) móvel, capaz de construir e desconstruir identificações, sem se submeter aos mandados de gênero considerados meros artifícios ou ficções culturais.

É impossível resumir a quantidade de fatores que intervêm na mutação do gosto, à qual estamos assistindo; sublinhemos as possibilidades insólitas que oferece a ciência a nível cirúrgico e químico; as modificações no campo do direito, (cada vez são mais países que admitem um terceiro sexo), assim como uma permissividade sem precedentes na oferenda das satisfações possíveis. Mas, sem dúvida, o mais impactante se observa no campo do discurso midiático e seus efeitos sobre o desejo. Na notável hipersexualização do discurso, o gênero se converteu em um S1 iniludível, signo opaco do desejo do Outro que se plasma nas telas, tentando as jovens subjetividades que se encontram à deriva, sem poder acrescentar um saber consistente com o qual orientar-se, com o agravante de que, em muitos casos, os adultos atribuem à criança, um saber sobre sua identidade e sua maneira de gozar, que pode induzir à precipitação de sérias passagens ao ato.

É no diálogo com um psicanalista, que as crianças e jovens podem encontrar um lugar para explorar a diferença entre o ser e o gênero[6] e de onde extrair um saber sobre a peculiaridade de seu desejo, definido por Lacan como falta a ser, no qual, o gênero de seus pais e a maneira como eles distinguiram o sujeito, deixou uma marca indelével. Não obstante, Lacan se assombra da “prematura vocação (...) que cada um experimenta a respeito do sexo”, não menos que Freud, ao considerá-lo como a verdadeira espora para o pensamento, instante de ver a falha do Outro, que perde autoridade a seus olhos desconfiados. No entanto, devido à pressa[7] do mundo atual, se pode chegar a evitar o tempo necessário para compreender até tornar factível, a declaração do sexo,[8] a que pode surgir como conclusão da encruzilhada adolescente.

A respeito das infinitas possibilidades de identificação que oferece a denominada identidade queer, parece justa a apreciação de Natalie Jaudel, que a considera uma transposição na língua comum do axioma lacaniano “todo mundo é louco, quer dizer, delirante.” Dito abanico demonstra ser um modo de nomear as soluções atípicas do gênero e dos pares atuais, daí a importância da lógica para a prática da psicanálise do parlêtre: em seu último ensino, Lacan situa o falo como uma escritura possível, não necessária para drenar o gozo.

A formação requerida para brindar esse buraco singular onde resolver os impasses atuais na dimensão do desejo e da satisfação, o analista a obteve de uma “severa ascese”[9], aquela que lhe permitiu decifrar seu próprio mistério, o mistério do corpo falante. Mas, falar de mistério poderia induzir à ideia de que estava oculto em algum lado e que era preciso revelá-lo. Daí, a insistência de Lacan: não há iniciação! entendida esta, como ciência do gozo. Mais ainda, a análise afirma, é uma anti-iniciação.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes

NOTAS

  1. Parte deste texto está incluído no Comentário ao anexo III Con Freud de Una cuestión Preliminar a todo tratamiento de la psicosis que será lançado breve em Cuadernos de Psicoanálisis.
  2. J. Lacan, La dirección de la cura y los principios de su poder. En O. E. RBA Barcelona. 2006. P. 622
  3. J.A. Miller, De la naturaleza de los semblantes. Paidós. Buenos Aires. 2002. P. 253.
  4. Ibídem.
  5. J. Lacan, La Cosa Freudiana o el sentido del retorno a Freud en Psicoanálisis. P. 385
  6. Alusão ao título do livro de Clotilde Leguil, L’être et le genre. PUF. París.2015
  7. Na Argentina, é possível a mudança da inscrição do gênero a partir dos três anos
  8. Expressão de Lacan
  9. Jacques-Alain Miller, Sutilezas analíticas. Paidós. Buenos Aires. 2011. P. 35