A SEXUAÇÃO DAS CRIANÇAS
Argumento 6º Jornada de estudo
_Laura Sokolowsky e Hervé Damase

Como o sexo chega às crianças?

Seria um mistério da natureza? Ser menina ou ser menino não parece evidente na época dos problemas de gênero[2]. Uma tendência atual coloca em questão a diferença sexual como ideologia socialmente ultrapassada. “Menina ou menino” parece a alternativa da qual se trata de escapar, visto que inscreveria o sujeito em um destino totalmente traçado, sem espaço para a surpresa. Assim, o herói do mangá brinca com a transformação permanente, passando de um polo para outro do espectro sexuado para incarnar a nova figura ideal à qual a criança se apega, para ilustrar essa flutuação à qual seu ser está confrontado. Para o inferno o rosa e o azul, viva o arco-íris! A fluidez dos gêneros seria uma nova norma tendendo a se impor em nome de uma liberdade de cada um para escolher seu próprio sexo?

Se a vulgata de um standard edipiano – identificação ao pai do mesmo sexo – não se sustenta mais face ao impasse do sexual, como se orientar nesse novo labirinto do fora-do-sexo? A moda unissex e a denúncia do sexo designado são suficientes para dar mais margem de manobra às crianças na escolha de uma posição sexual?

 

A experiência freudiana infantil

Freud mostrou que a experiência infantil estava fundada sobre dois eixos: de uma parte, as pulsões parciais, de outra, a comparação imaginária dos corpos. A percepção dos órgãos genitais do outro traz consequências decisivas. A descoberta da castração materna é traumática pois se sua mãe é castrada, o menino começa a acreditar na castração. A menina, por sua vez, percebe-se como privada em seu corpo e isso a incita a dissimular, negar ou compensar essa privação. Para Freud, a referência ao corpo é onipresente pois o falo é um significante localizado no corpo sexuado. Este encontro constitui para cada um, menina ou menino, um momento de crise. O modelo freudiano ainda é atual, pois se trata para a criança de tomar posição: ela deve inventar sua solução com os meios dos quais dispõe. O que acontece quando ela cresce em uma família monoparental ou que esta se demonstra fundada em um laço homossexual? Hoje, o pequeno Hans de Freud encontraria uma solução diferente que sua fobia de cavalos para tratar o gozo de suas primeiras ereções, das quais não sabe o que fazer ou pensar? Os sintomas infantis evoluem em função dos discursos contemporâneos?

 

A anatomia não é destino

Lacan levou em consideração as ultimas elaborações freudianas concernentes à sexualidade feminina: a castração não deve ser entendida como a via necessária para uma mulher. A sexuação não depende do real biológico, as ambiguidades genitais de natureza orgânica não determinam a assunção subjetiva do sexo. Ao formular que todo sujeito deve lidar com a existência das lógicas feminina e masculina, bem como com o corpo que tem, Lacan libertou a psicanálise do embaraço segundo o qual a anatomia, é o destino. A clínica analítica revela, por sua vez, que as identificações infantis não coincidem necessariamente com as nomeações que provêm do Outro. Acontece de um menino se sentir feminino, mais perto de sua irmã do que de seu irmão ou de seu pai. E de uma menina aspirar tornar-se menino, rejeitando certos signos associados ao feminino. Essas identificações infantis comportam um julgamento prematuro sobre o devir sexuado? Em que momento e de que maneira as crianças fazem a escolha de uma posição sexuada e de um modo de gozo? Os sintomas atuais que conduzem as crianças à análise estão ligados à escolha problemática da identidade sexuada?

 

Distinção ou sexuação?

Lacan enfatiza que é o adulto que opera uma distinção entre a menininha e o menininho em função de critérios dependentes da linguagem. Ora, aqueles que distinguem fizeram eles próprios uma escolha de gozo; eles incarnam uma posição anterior quanto a sexuação. A novilíngua[3] atual preconiza o uso do neutro afim de evitar qualquer discriminação entre feminino e masculino. Esse projeto, que consiste em dessexualizar a língua por meio do apagamento dos gêneros gramaticais ou o emprego da linguagem dita epicena, não ajuda as crianças a franquear preconceitos e ideais que pesam sobre elas. Na instituição familiar, como em todos os outros espaços da infância, os adultos devem se desprender dos termos que indicam feminino ou masculino para permitir que as crianças se confrontem, à sua maneira, com a questão da escolha sexuada inconsciente. A prática em instituições especializadas, seja no domínio sanitário ou social, se situa na vanguarda dessa reflexão; o ensino que podemos extrair disso é crucial.

 

Entre palavra e silêncio

A sexuação feminina se especifica de não ser toda sujeita à castração: uma divisão se efetua entre o gozo fálico e o gozo do Outro, também designado por Lacan como gozo suplementar. Este se evidencia fundado sobre o gozo da palavra, uma vez que o laço amoroso se sustenta em um Outro que fala. Assim, o tagarelar das crianças, às quais é demandado com frequência que se calem para aprender, tem sua fonte na posição sexuada que consiste em gozar da palavra. Ao contrário, o que podemos dizer das crianças silenciosas: não estariam elas tomadas por outra modalidade de gozo que curto-circuita a palavra, por estar causada por um objeto pulsional, sempre o mesmo? A dissimetria sexuada em relação ao gozo se revela às vezes precocemente, o que merece nossa atenção. A falha do sexual está no fundamento de nossa clínica.

Esta jornada será uma fonte inigualável de ensino epistêmico e clínico para aqueles e aquelas que analisam, educam e cuidam de crianças, recolhendo sua palavra, na época do questionamento do édipo e da valorização da castração que opera a tomada da linguagem sobre os corpos.

Laura Sokolowsky e Hervé Damase
Tradução: Cristina Vidigal
Revisão: Ana Lydia Santiago

NOTAS

  1. Planejada para o dia 13 de março de 2021, no Palais des Congrès d’Issy-les-Moulineaux, Paris, França.
  2. Referência à proposta do livro de Judith Butler “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da identidade”, como foi traduzido no Brasil.
  3. Neologismo criado por George Orwell em seu livro “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”.