O IMPOSSÍVEL DE LEGISLAR
_Irene Greiser

O homem é a única criatura que se nega a ser o que é,
Albert Camus

 

1) Biopolíticas dos corpos

O conceito de Biopolítica que Foucault introduz em 1974 como biopoder exercido sobre os corpos, obviamente foi mudando. Hoje não se trata mais da repressão da sexualidade, mas do imperativo: “seja você mesmo e eleja seu próprio sexo”.

“Nem uma a menos”, “seu corpo te pertence”, são significantes que, a partir do discurso do mestre, concernem aos corpos. Enquanto escrevo este texto, um novo significante se introduz: “Fique em casa”, “Mantenha seu corpo isolado.”

A natureza pôde ser recusada pela medicina com as técnicas de reprodução assistida e a mãe que era certíssima já não o é mais.

Para Freud, a anatomia nunca foi o destino, entretanto seu binarismo fálico/castrado foi criticado pelos movimentos feministas que alegam que ele responde a preceitos do patriarcado.

Lacan, com as fórmulas da sexuação, faz uma leitura diferente, já que esta implica uma escolha que concerne às modalidades de gozo, independentemente daqueles denominados homens ou mulheres, escolha que não depende da vontade a partir do eu sou, mas do inconsciente.

A diferença sexuada parece diluir-se numa multiplicidade de nomeações amparadas no direito de autodeterminação do sexo – de acordo com a auto percepção que se tem de seu corpo. O significante trans se converteu no significante mestre de nossa época.

 

2) Corpos equivocados?

O significante “ter nascido em um corpo equivocado” nos permite fazer a seguinte pergunta: Existe a possibilidade de se nascer em um corpo acertado? Ou cada um deve se encarregar de fazer seu próprio corpo?

O equívoco para um analista nunca é aquele do corpo, já que o corpo não fala, mas é o sujeito que fala com seu corpo. O falasser, enquanto corpo falante, não implica que o “corpo fala”, senão que “o homem fala com seu corpo”.

Uma coisa é ter a ilusão imaginária de que somos um corpo e outra coisa é a certeza de que há um eco genético que nos diz do corpo equivocado. O corpo funciona como caixa de ressonância de um eco do dizer e não de um eco genético.

Ninguém nasce no corpo acertado, todos nascemos em corpos equivocados e cada qual deve fazer seu corpo.

Em muitos casos há uma insondável decisão do ser que se inclina para a certeza de afirmar um “eu sou” que de modo algum é equiparável à sexuação.

A pergunta histérica: sou homem ou sou mulher, ganha no fenômeno do transexualismo a certeza de ter se nascido num corpo equivocado.

Quase todos os testemunhos de trans se baseiam no sofrimento do sujeito por causa dessa equivocação do corpo, e como analistas alojamos esse sofrimento tanto dos meninos/meninas assim como o de seus pais. A mudança de identidade alivia o sofrimento, e constitui uma solução, mas também pode acontecer que o sujeito esteja capturado num projeto dos pais.

 

3) Uma leitura possível da lei de identidade de gênero

É inegável que deve haver uma comunidade entre Direitos Humanos, Democracia e Psicanálise: se nem certo momento teve lugar o Direito à Identidade como consequência da apropriação de bebês nascidos no cativeiro por parte do Terrorismo de Estado Argentino, hoje nos ocupa a lei 26743 de Identidade de Gênero, impulsionada pelos direitos das minorias trans e travestis. Como psicanalistas reconhecemos esse progresso, mas ele não nos leva a fazer equivaler igualdade jurídica a disparidade sexuada, tampouco identidade a sexuação.

Que contribuições a psicanálise pode trazer quando, a partir do discurso médico/jurídico, se legisla a escolha do sexo e a autodeterminação do sujeito de acordo com o sexo auto percebido?

Para a psicanálise não se trata de um mero enunciado proferido a partir do eu, nem da vontade, mas de uma escolha de gozo que é inconsciente.

Quero me referir em particular à questão do auto percebido assim como ao consentimento informado.

O “Eu sou eu” “eu me autodetermino” da atualidade postula uma identidade consigo mesmo, mas essa mesmidade foi desmentida por Lacan tanto em relação à captura especular como em relação à identificação simbólica. O único núcleo indiviso do sujeito está marcado por esse gozo opaco do sintoma ali onde o sujeito não pode reconhecer-se sob um “eu sou”, mas sobretudo como um eugoz(s)ou, neologismo utilizado por Lacan, para dar conta do ser de gozo.

O sujeito precisa do outro para se fazer um corpo, para identificar-se e para sexuar-se também .

O que ocorre hoje em dia com relação aos tempos em que se pula esse tempo da latência, tempo de compreender que Freud situou como essencialmente humano?

Muitas vezes pode acontecer que com a etiqueta de infância trans se impede que a criança tenha um tempo de compreender e se conclui antecipadamente numa nomeação a partir do instante de ver.

No livro de minha autoria, Sexualidades e Legalidades, os Doutores Silvina DÁmico e o Dr. Pablo Raffo apontam duas noções jurídicas em relação com esta lei no que concerne à situação de meninos, meninas e adolescentes e fazendo menção à Doutora Aida Kemelmajer de Carlucci colocam duas questões inerentes à lei. Uma é o conceito de autonomia progressiva, na qual se trata de preservar mais além da idade cronológica, a capacidade de julgar e discernir. Essa autonomia tem uma progressão que requer o fator temporal. Esse aspecto assinalado pela doutora Kemelmajer é fundamental porque não apenas leva em conta o fator temporal, como também nos faz pensar em como se equivoca muitas vezes diante do respeito pelo Interesse Superior da criança: esse Interesse Superior da Criança não implica em autorizar o eu quero da criança.

A outra questão à qual quero fazer referência diz respeito ao consentimento informado. A lei contempla a reatribuição de sexo, a partir dos 16 anos ou apenas a mudança de identidade, e para este último não há idade. O mesmo deve ser solicitado por um maior com o consentimento do menino ou menina e no caso em que os progenitores ou responsáveis não estão de acordo, o juiz pode outorgar a mudança de identidade do menor. Nesse caso este ficaria judicializado.

Há, além disso, um aspecto bioético que considero importante que os doutores Raffo e DAmico muito pertinentemente apontam com relação à lei de identidade de gênero, comparando com outros procedimentos relativos à demanda de mudança de identidade por outras razões que não sejam de gênero, tais como: solicitar uma mudança de identidade motivada por exemplo por um sobrenome desonroso. Nesses casos, se recorre a um processo jurídico que não é abarcado pela lei de identidade de gênero, no qual só o consentimento informado já é suficiente.

Poderíamos pensar no caso de Mariana Dopazzo, filha de Etchecolatz que solicita a mudança de sobrenome de acordo com seu desejo de não portar o sobrenome de seu pai biológico - repressor da ditadura militar argentina - que implicou um procedimento jurídico que requereu a necessidade de apresentar razões.

Numa época na qual todo o “auto” se impõe, a autodeterminação do sexo, o consentimento auto informado, a vontade pro criacional, a auto percepção que reforça o “eu sou livre”. Não seria necessário mostrar ao sujeito as suas amarras? Os lugares nos quais ele está determinado pelas marcas do Outro? Liberar-se das marcas do Outro seria a mesma coisa que a autodeterminação? Essa suposta liberdade, liberada das marcas do Outro, libera ou condena o sujeito? No que se refere à sexuação, não estamos diante de uma certa banalização do sexo congruente com o gênero fluido?

Se aponto algumas incongruências no nível da lei de Identidade de Gênero, como também existem algumas com respeito à lei do aborto, em relação ao direito à vida do feto versus o direito do corpo da mãe, como também existem a respeito da Lei de violência de gênero, etc, é porque tudo isso dá conta de que no nível do SEXO HÁ UM IMPOSSÍVEL DE LEGISLAR .

Maio 2020

Tradução: Cristina Drummond (AMP/EBP)