A HERESIA É FEMININA
_Gerardo Battista

Sabemos que o mundo em que vivemos e viveremos estará animado pelo frenesí da escolha que se extende hoje atá a escolha de sexo. Podemos captar a dinâmica herética do mundo contemporâneo. Devemos aderir a isso? Em todo caso, não sem perguntarmos se o reino da escolha não será pior que o reino do pai, pior que o sentido comun da ortodoxia.
(Miller)

A adolescência é sensível às mutações da ordem social e, por tal razão, se converte em um mostruário dos efeitos de desmoronamento do pai da tradição judia-cristã. Por um lado, nesse artigo abordaremos como o declínio do pai e as tecnociências incidem em algumas religiões e feminismos e, por outro, como ambas trabalham de relevo para lidar com o real da diferença sexual nos jovens como um laço indelével ao discurso do inconsciente. Por último, tomaremos duas séries, Pouco ortodoxa e O conto da criada, para pensar cruzamentos entre as religiões e os feminismos a respeito do feminino, do corpo e do capitalismo vinculado à ciência.

 

1. Gênero – Sexuação - Corpo

Iniciaremos este percurso articulando brevemente três significantes, Gênero – Sexuação – Corpo, com o fim de situar a temporalidade da sexualidade no ser falante. Posteriormente, nos interessa propor uma hipótese sobre o impasse na sexuação dos jovens. Por último, localizaremos que a tendência da ciência empurra a separação do corpo e as palavras, produzindo consequências a nível da sexuação.

Freud[1] localiza que não há um objeto predeterminado da pulsão, frente à ausência de um programa biológico que determine a proporção sexual, cada ser falante deverá inventar sua própria forma sintomática de fazer com o real do sexo. A incrição da não-relação no corpo falante é produto do encontro com lalíngua. Encontro traumatizante pela sua condição de fora de sentido onde se joga a insondável decisão do ser que fixa, desde muito cedo, um gozo.

A decisão mencionada acimda é a base sobre a qual Lacan funda a não-relação sexual. A respeito disso, Lacan propõe que "O ser sexuado não se autoriza senão de si mesmo... e de alguns outros, é nesse sentido que há escolha[2]". Esta referência de Lacan permite licalizar que a assunção de uma posição sexuada é um processo cuja escolha não é sem o encontro com outros corpos. Deste modo, é evidente a vigência da proposta freudiana a respeito dos tempos da sexualidade. A temporalidade da sexualidade está escandida pela "origem desse famosos não há relação sexual[3]", a latência. Então, podemos localizar que a escolha de desejo se produz na infância; enquanto que a escolha de objeto, o encontro dos corpos e o consentimento sobre a posição de gozo no fantasma ganha forma a partir da puberdade.

A continuação, desenvolvemos brevemente a incidência do gozo fálico em cada um dos momentos da sexualidade. No primeiro tempo lógico, a afetação do gozo no corpo na infância, as primeiras ereções de Hans, não são signo de um gozo auto-erótico através do qual descubre essa realidade sexual de seu próprio corpo. Mas sim, Lacan considera que o encontro com suas ereções é "o mais hétero que há[4]". A presença real do pênis é "um elemento muito difiícil de integrar[5]".

De fato, Lacan afirma que nenhuma criança jamais experimenta que esse pênis está aderido naturalmente[6]. O escandâlo freudiano não foi tanto o descobrimento da sexuaidade infantil, mas sim o descobrimento dos traços próprios da mesma.

O sexo não é o traumático, mas sim a ausência de saber e o enigma no qual essa ausência produz no ser falante. De fato, o trauma como encontro é logicamente posterior ao furo.

Este encontro com a imposssibilidade, ligado ao fato de que não cai uma proibição sobre o gozo que surge deste pênis real, provocam que o corpo devenha Outro. Em Hans se trata do encontro com a presênça real do pênis, dimensão real do objeto a, goce fálico que se localiza no ponto da ausência de relação sexual. Isto é, o objeto a é um suplemento da diferenta sexual que não existe no sistema significante. O sintoma fóbico tenta dar forma significante ao gozo do orgão que traumatiza por sua condição de fora do corpo. Deste modo, os fenômenos do corpo em seu fazer xixi devém de um acontecimento de corpo, o modo à mordida. Portanto, o conteúdo do sintoma fóbico cirscunscribe a segunda perda do objeto a, a fixação pulsional. A operação fóbica implica que o gozo fálico se ligue aos mutáveis revestimentos psíquicos da libido, como ser «a angústia de ser devorado (mordido) pelo animal totêmico (pai) provêm da organização oral, primitiva[7]», soldando assim o objeto fálico e a pulsão oral, isto é, o sentido e um real. A colocação a ponto dos trajetos pulsionais, a conformação de uma fantasia, é o que possibilita a saída da infância.

O segundo tempo lógico, a metamorfose da puberdade, concerne à vivências contingentes no corpo, a colocação em jogo da pulsão sob a ação do objeto a, que introduzem o enigma do ser sexuado. Para atravessar este tempo, o jovem necessita de uma elucrubação, um argumento que lhe permita fixar um partenaire a partir do que são suas condições de amor e de gozo. A modalidade de laçõ com o outro como partenaire sexual em um sentido será uma invenção e em outro uma reedição corregida e aumentada da sexualidade infantil. Este novo enodamento entre o gozo, o corpo e o sentido, como resposta a não-há relação sexual, propicia que "há relação com o sexo[8]", O que nos interessa sublinhar é que a assunção do sexo implica uma escolha que não é sem os outros, não é sem passar pela experiência diversificada de gozos no encontro com outros corpos. E essa escolha do ser falante se define pelas condições de sua escolha, isto é, o objeto a que condensa o gozo e as satisfações da pulsão. Por tal razão, Bassols localizará que "no umbigo mais real do corpo de gozo e da sexualidade há um objeto que é a-sexuado[9]. Lacan qualifica à sexualidade como a-sexualidade, é seu modo de nomear o perverso-polimorfo freudiano inerente a ela. A a-sexualidade não é nem feminina nem masculina, é parcial, o que condiz com o caráter parcial do objeto. De fato, a conclusão que Lacan extrai é que o objeto a ocupa o lugar do partenaire que falta. Por isso o objeto a é o articular entre amor e gozo. Neste sentido, a fórmula não há relação sexual ganha todo o seu valor, o que quer dizer que os seres falantes, como seres sexuados, formam parceria, não no nível do significante, e sim ao nível do gozo e que essa ligação é sempre sintomática. De fato, a adolescência como sintoma da puberdade implica assumir o próprio corpo como suscetível de produzir o desejo sexual adquirindo causa de objeto a causa de desejo[10].

O quê sucede quando a adolescência se prolonga? Partimos da hipótese que a dificuldade da assunção de uma posição sexuada refere a um impasse no consentimento a uma posição de gozo na fantasia. Sem o recurso da fantasia, o objeto a não se coordena com a função fálica. O real do objeto não fica velado pelo brilho fálico. Isto faz que não falte o objeto, dificultando um espaço para que habite o desejo. A hipótese mencionada anteriormente nos permite deduzir que um possível efeito de desmoronamento do pai da tradição é o impasse nas funções do falo, o qua traz como consequência, por um lado, a dificuldade de estar sujeitado a uma posição inconsciente e, por outro lado, a de limitar, condensar, localizar o gozo fálico no objeto a na borda do corpo.

A dificuldade de assumir uma posição sexuada implica respostas que denotam um laço indelével entre o inconsciente e o corpo, como ser a inibição ou a compulsão sexual. Podemos inferir que as respostas mencionadas portam a estrutura do sintoma social e têm a propiedade da toxicomania.

Por um lado, o síntoma se torna social como resultado da rejeição da castração. Por essa razão, o plus de gozo se livra ou não se anuda ao objeto, dificultando uma posição inconsciente. Isto é, o sujeito não se encontra sujeitado a um discurso, o que permite constatar o ascenso do plus de gozo ao posto de mando. Aqui se faz evidente a diferença entre um sintoma social e a sintomatização da puberdade como solução. Por outro lado, a toxicomania "rompe o casamento com a coisinha de fazer xixi[11]", promovendo o divórcio do falo com o corpo.

Esta última obstaculiza a instrumentalização do falo complexizando ainda mais a comédia dos sexos. Os sintomas socias contemporâneos estariam constituídos por identificações lábeis, erráticas, fluídas que deslizam sem uma ancoragem real do corpo ou identificações rígidas produto da parceria do materno com o social, que advém como relevo do pai da tradição. Em suma, ambos extremos são uma resposta ao estrago da identificação ao S1 e a dificuldade de consentir a uma posição de gozo.

A continuação, nos interessa enfatizar a função que cumpre o encontro com outros corpos na assunção do sexo. Em uma entrevista que realiza L.Dupont a M.-H. Brousse em "Lacan Web Télévision", a analista francesa relata dois artigos periodísticos nos quais dois homossexuales tomavam a palavra dizendo que quando eram crianças tinham se perguntado se não eram trans. E, de fato, explicavam que era porque não conheciam o modo de gozar homossexual que estava em gestação neles. Depois do encontro com outros corpos compreenderam que não eram trans, mas sim que eram propriamente homossexuales.

Brousse conclui que o pensamento trans se impõe como o signo de uma certa emencipação do real biológico em relação ao real da palavra. Por sua parte, a ciência, frente as manifestações nas crianças de perguntas e certezas sobre uma possível escolha trans ou fixações precoces na sexuação infantil[12], empurra à resolução de uma posição sexuada na infância desentendendo não apenas que a sexuação é um processo, mas sim tentando apagar a noção mesma de corpo sexuado ao reduzi-lo ao biológico. A tecnociência não apenas propicia a gestação fora do sexo, sem passar pelo corpo do Outro, não só sustenta que se pode ter uma sexuação evitando a função do encontro com Outro corpo, mas também tenta apagar a ateridade radical do Outro na escoha do sexo.

A psicanálise de orientação lacaniana não faz objeção alguma a respeito da diversidade sexual dos seres falantes, mas concebe que a assunção de uma posição sexuada é singularíssima e inerente aos dois tempos da sexualidade, a infância e a puberdade. O díspar da sexualidade articula a inveção do sexo com o incomparável que habita em cada um, a singularidade. Isto é, o sexual e concebido como uma diversidade que acolhe o singular. "Quando digo que não há relação sexual propomho muito precisamente esta verdade de que o sexo não define nenhuma relação no ser falante[13]".

A alteridade radical em jogo no real do sexo é hétero para todo ser falante. Nesse sentido, Lacan afirma que chamamos "heterossexual, por definição, ao que ama às mulheres, qualquer que seja seu própio sexo[14]". O hétero, tanto Freud como Lacan, o colocam na conta do feminino, o qua não é o mesmo que as mulheres. O feminino é um gozo que constitui a diferença abosulta em cada ser falante, independentemente de seu sexo biológico e de qualquer lógica binária. O feminino é "o Unarismo do único sexo em jogo para a psicanálise de orientação lacaniana, o Um de "o feminino". O não binarismo lacaniano implica que o sexo apenas se apresenta no ser humano do lado do feminino como um gozo que não se deixa capturar pela lógica binária do falo[15]" O feminino, como não-todo, permite não consistir à diferença binária que se sustenta do lado macho das fórmulas de sexuação.

Atribuimos ao gênero o estatuto de semblantes e identificações, que se bem concordamos, não contempla a escolha da modalidade de gozo que implica a sexuação. Em suma, o fundamento da diferença sexual é o real do gozo e não os semblantes da civilização, apesar de que joguem sua carta. Ao mesmo tempo, Copjec localiza que o giro da diferença sexual gênero em 1980 foi um erro simétrico. Esse deslocamento deixou por fora a biologia e "produziu sujeitos sem nenhum verdor, sem corpo, ou mais precisamente sem orgãos sexuales[16]". Cabe destacar que as teorias de gênero que se desentendem do real do sexo nas posições sexuadas se homologam ao discurso capitalista, instaurando a separação entre o corpo e as palavras que tende a definir o sexo a partir do biológico. Podemos situar que a separação mencionada é um efeito do desmoronamento do pai da tradição provocando impasse na relação entre o inconsciente e o corpo do ser falante. É nesse preciso lugar que o discurso social, como ser as religiões e os feminismos, proporciona remendos diante da dificuldade de consentir a uma posição de gozo no inconsciente.

 

2. Os feminismos e as religiões como respostas aos avatares do corpo

"As religiões são inicialmente meios para lidar com o corpo:
o que se pode comer, o que está proibido, quando se pode ter sexo, quando não, quando podemos tomar banho e quando não.
Há uma atenção dirigida para todas as instâncias ligadas ao corpo.
Pode-se até dizer que há uma polícia do corpo,
em particular para as mulheres". (Brousse)

A epígrafe desta seção permite situar com precisão pontos de cruzamento e a razão do êxito de alguns discursos religiosos e feministas nas subjetividades atuais. Bassols[17] compara a subjetividade da época com a psicose ordinária porque o sujeito contemporâneo nada entre discursos, não se ancora em nenhum, mas sim funciona entre algum dos quatros discursos que Lacan assinalou. Nesse sentido, os discursos sociais, como as religiões ou feminismos, podem servir de bússola frente à ausência de "um ponto que permita definir um regime de funcionamento tipo: os significantes e um gozo como exceção, ou um S1 como exceção, o Nome-do-Pai como exceção. Isso sustenta um certo regime de funcionamento. Uma vez que passamos a um regime sem exceção, tudo está infectado de gozo[18]".

Começaremos pelo ponto de cruzamento entre as religiões e os femininos que acentua que o lugar do Outro segregado pela infância, pelo feminino e pela loucura por fazer presente um gozo impossível de governar[19]. O feminismo é plural e o debate entre as distintas correntes feministas é tão ou mais importante que o que se dá entre o feminismo e as propostas cientistas e religiosas que pretendem refutá-lo. Um setor do "feminismo contemporâneo já não está organizado para a reinvidicação a respeito do masculino, mas sim pela paridade. Cada sexo vai por seu lado sem se interessar pelo outro, e por ende no Outro. Nesse aspecto, curiosamente e paradoalmente, esse feminino se assemelha às religiões Essas separam os homens das mulheres[20]". Daí que sua deriva religiosa funciona de maneira segregativa. Lacan adverte que "por pouco que a ciência ponha de sua parte, o real se extenderá, e a religião terá, então, muitos mais motivos ainda para apaziguar os corações"[21]. É por isso que Lacan se interessa pelo vínculo entre o real e a religião para advertir que quanto mais se extende esse real, mais se sustenta a religião e sobrevive, apesar de tantos avanços científicos e tecnológicos. Dada a expansão irremediável do real no mundo, a religião oferece um alívio: um sentido ao real da vida, do qual é impossível escapar, pois do sentido se goza. Miller propõe que a "eficiência do discurso científico explica aparentemente os ressurgimentos atuais dos discursos da tradição como, por exemplo, a escenção do Islã. É um recurso. Como o catolicismo, por outro lado, que também se recupera. Ocorre que essas tradições prescrevem sobre o que deve ser a relação sexual, e isso constitui a raiz da sua potência, de sua eficiência contemporânea em relação com o discurso da ciência[22]".

Miller localiza que "nesses ares da época, não se fala do retorno da religião ou das religiões mas sim do religioso[23]". O religioso é a religião aligerada de tudo aquilo que pode sustentá-la ao modo de instituição, ao modo de poder institucional, ajuda de custo institucional, com coorte de locutores, de escritorzinhos, de midiáticos, que ganhem relevo.

O individualismo democrático contemporâneo é aquele que se caracteriza pela liberação da relação com o Outro e seus semblantes, cuja consequência é que o papel e o lugar do princípio de autoridade foi afetado.

Não apenas a religião, devinda no religioso, corrobora uma mudança radical pela incidência do capitalismo, mas também o localizamos em alguns femininos. A respeito disso, Nancy Fraser[24] assinala que a liberação das mulheres acabou se enredando em uma amizade perigosa com os esforços neo-liberais para construir uma sociedade de livre mercado. Isto poderia explicar o porquê que as ideias feministas, que uma vez formaram parte de uma visão radical como sintoma do que anda no mundo, se expressem, cada vez mais, em termos de individualismo. Se outrora as feministas criticaram uma sociedade que promove o carreirismo laboral, agora se aconselha que mulheres o assumam e o pratiquem. Um movimento que, se antes priorizava a solidariedade social, agora aplaude às mulheres empresárias. A perspectiva que antes dava valor aos cuidados e à independência, agora encoraja a promoção individual e a meritocracia.

 

3. Ortodoxias – Heresias- O feminino

"As séries e as mulheres do mesmo mundo, sem limites.
A série, forma do não-todo que testemunha
uma afinidade eletiva com todos
os não-todos do mundo não-todo"
(Wajcman).

Nessa seção trabalharemos duas séries, Pouco ortodoxa e O conto da criada, que articulam despostas das religiões tradicionais e os feminismos diante do feminino. Ambas séries, de diferente maneira, propõem aquilo que Judith Butler refere em Vida precária: "ainda que lutemos pelos direitos sobre nossos corpos, os corpos pelos quais lutamos nunca são suficientemente nossos. O corpo tem uma dimensão invariavelmente pública. Constituído na esfera pública como fenômeno social, meu corpo é e não é meu[25]". Os corpos são políticos e por tal razão os femicídios, as mortes por abortos candestinos, a sub-rogação de ventres são temas de disputas entre as religiões e o feminismos em relação ao Estado de direito.

 

3.1. O herético que habita no materno

Pouco ortodoxa conta a história de uma jovem que rompe com sua comunidade jasídica de Williamsburg em Nova York e inicia uma nova vida em Berlim. Trata-se de um grupo ultraortodoxo com um estilo de vida sob uma estrita interpretação da lei judia que inclui matrimônios pactados, redução do coito à reprodução, famílias com uma média de 8 filhos e uma rejeição a quase todos os hábitos da modernidade.

Por quê esta série gerou fascinação e "empatia" com uma cultura em aparência tão estrangeira à nossa? A série mostra, por um lado, a passagem do enclausuramento da tradição religiosa ao regime capitalista representado na cidade de Berlim. A exaltação da renúncia a esta tradição pode esconder um elogio do hedonismo do capital. Em suma, em Pouco ortodoxa podemos ler que o Kakón que o Ocidente pretende atribuir a Williamsburg se revela como uma extimidade que as muralhas culturais e religiosas não conseguem suturar. Desse modo, esta comunidade jasídica nos torna Unheimlich pelo Heim que comporta para Ocidente.

Por outro lado, nos interessa ressaltar que diante de um mundo cada vez mais similar a um conjunto aberto, as respostas são mais radicais e fechadas para as religiões ortodoxas que tentam sustentar sua tradição, assim como as de matizes ditatoriais que promulgam de forma incondicional o capitalismo – muitas delas propondo "um retorno à tradição", como veremos em O conto da criada. Miller[26] afirma que o herético se sustenta na lógica do não-todo, pois busca ser sem igual, descompletando o dogma dos conjuntos fechados. O herético é aquele que realiza sua escolha e por tal razão poderia se localizar do lado do singular, de uma experiência. A ficção trabalha a passagem da ortodoxia à religião privada propiciado pelo ato herético de Esty que determina sua saída da comunidade. Do mesmo modo, aborda uma série de temáticas que se justapõem: o semblante andrógino da protagonista; o gozo sexual; o aborto; o lugar da mulher na religião fazendo existir a relação sexual na mãe; o exílio – sempre feminino.

A série não apenas mostra como esta comunidade judia reduz à mulher ao materno, mas sim que os corpos são designados a reduzir a diferença sexual à procriação. Entretanto, por mais ortodoxa que fosse, não há lei que valha frente ao gozo, sempre herege da tradição. Este retorna no sintoma de vaginismo como rejeição do corpo ao mestre da procriação, como detrator do universal. A série mostra o empurre a conceber ao modo de um "ser nomeado para[27]" povoar o furo que a shoá deixou. Essas religiões anti-aborto sabem que controlar "as vidas minúsculas é util para controlar a Vida. Mas isso se faz sempre da mesma maneira: pelo imperativo de reduzir as mulheres à mães[28]".

O liberalismo contemporâneo, com sembante religioso, tende a reducir à mulher à mãe, a última onda feminista ensina que a maternidade não recobre totamente o feminino e que esta clivagem é o que o aborto mostra. Daí que o aborto seja definido como humano, já que é a objeção, apesar de que deixe marcas profundas nos sujeitos, se eleva diante dos defensores da potência de uma vida muda e cega que é o que tomaria, ao não mediar dita objeção, o corpo dos seres falantes[29].

Tomamos esta série porque propõe uma versão contemporânea do "duplo mãe" que Lacan[30] alude a respeito so pequeno Hans, Gide e Leonardo: a avó materna e a mãe de Esty. Embora sua avó comulgasse com a orden de ferro da comunidade, era com ela que cantava, atividade proibida na presença dos homens.

O uso do canto é o que lhe permite ganhar uma bolsa e fazer um lugar díspar. Sua mãe , na tentativa de sustentar a maternidade e sua escoha sexual como mulher, perde legalmente a guarda da sua filha e se muda a Berlim. Com Lacan, localizamos que uma mãe pode desejar como homem, mas ama como muher. Em uma das poucas cenas compartilhadas entre a protagonista e sua mãe, antes do seu encontro em Berlim, a última dá a filha o passaporte Alemão.

Ainda que a jovem o rejeite, o esconde da sua vó para conservá-lo. Todo segredo é segredo de gozo e diante de tudo, feminino – apesar de que ainda não esteja revelado – o passaporte serve de "título no bolso" para Esty. A série ensina que uma saída da adolescência pode ser pelo feminino que habita na mãe. Esta via permitiu a Esty encontrar uma solução diante do enclausuramento estragante quando "se observa a inversão súbita do medo na coragem sem limite[31]". Ato de separação que produz, não sem a ajuda de outra mulher, sua professora de piano, com a qual tinha clases em segredo. Chega a Berlim em busca de uma mulher- que se converte em sua mãe depois de que se revelou o segredo familiar – e de outra versão para habitar sua própria bipartição feminina.

 

3.2. Mulheres reduzidas a um organismo gestante

Não apenas os significantes mulher/mãe/ventre são temas centrais nas raízes ortodoxas judías, mas também no futuro que se projeta como possível transmutação cristiana. O conto da criada foi escrito por por Margaret Atwood en 1984. A série, criada por Bruce Miller, apresenta um novo sistema político nos Estados Unidos.

O mesmo se apresenta como "uma volta à tradição" religiosa, antecipada por Lacan, com fortes argumentos racionais e cientistas: o mesmo permitirá garantir um crescimento da natalidade em um mundo que, produto dos novos avanços científicos, mas também das conquistas das mulheres, gerou uma queda da fertilidade. Desse modo, a série propõe que o avanço dos direitos implica uma paridade de sexos que incide na diferença em jogo no real do organismo, a gestação.

Defred (Offred em inglés) é o nome que atribuem à protagonista quando se converte em criada. A etimologia do termoOf-Fred implica de forma direta o caráter da mulher como propiedade de um homem. As criadas ligadas à fecundidade e as esposas da maternidade. Os lugares se estabelecem em torno ao enaltecimento da criança, em um mundo de homens. Uma santíssima trindade aggiornada aos problemas da ciência.

Crianças apropriadas[32] em nome da religião, da moral e do Estado. Na República de Gilead, o corpo de Defred perdeu todos os seus direitos e sua missão na sociedade se reduz à ordem de ferro de procriar, tal como impõem as normas férreas estabelecidas pela ditadura puritana de inspiração bíblica idealizada por Serena Joy (a esposa de Fred Waterford) a partir do Antigo Testamento.

Brousse propõe que "situar à mãe no lugar do pai quando a família desfalece e que ela se mostra não ser mais que uma manada de escravos levados por ditadores, se paga com o sacrifício do feminino. Essa série demostra que, ao ser sacrificado ao materno, o feminino insiste, como um real impossível de saturar (...) Evidentemente o feminino faz retorno: desejo sexual e amor na serventes-reprodutoras[33]". Em Pouco ortodoxa, o feminino insiste no gozo da privação em jogo no sintoma que "faz greve" à imposição do toda-mãe.

O conto da criada coloca na mesa a temática da subrogação de ventres. A tendência das ciências, em particular da biologia e da genética, empurram a uma reprodução fora do corpo e do parentesco. Desse modo, a reprodução assistida permite a cada gênero reproduzir-se sem o outro. Isto é, liberar-se do sexo, o qual tende a diluir o que faz furo nas diversas experiências dos corpos sexuados.

 

Considerações finais

O triunfo da religião já não é tanto o da religião tradicional, mas sim o religioso, aquelas comunidades que promulgam de forma incondicional o capitalismo. De fato, diante do declínio da autoridade do S1, os poderes ditatoriais e autoritários na atualidade se servem do discurso religioso para se impor, tal como se evidencia no evangelismo neopentecostal[34] em Latinoamérica e no Conto da criada.

Diante do novo reino do não-todo que possui as características do múltiple, do ilimitado, do contingente e do deslocalizado, a resposta das religiões tradicionais, como o catolicismo e o judaísmo, se tornam mais ortodoxas, voltando-se sobre si mesmas e assim permanecendo isoladas, tal como se vê em Pouco ortodoxa.

Em ambas modalidades, podemos localizar um empuxo nominal religioso que beira o "ser nomeado para[35]" – que atenta contra a experiência da religião privada, modelam o laço social e regulam a relação do ser falante com seu corpo. É uma nominação que é um imperativo que coagula o sujeito no que o Outro religioso lhe demanda que seja, obturando o intervalo que o separa dessa identificação.

Como ser, o empuxo à mãe no judaísmo, o empuxo a reduzir uma mulher a um corpo que gesta no Conto da criada, o empuxo à paridade em aguns setores do feminismo.

Outra das religiões que vão somando adeptos no mundo é o Islã. O Islã não foi intimidado pelo discurso da ciência, como é o caso do Judaísmo e do Cristiano, pois Alá não é um pai. Alá é o Um. É o Um absoluto através do qual o sujeito, identificado como servidor do desejo de Alá. Torna-se agente da vontade. O Islã é especialmente adequado para dar uma forma social a não-relação sexual[36]. Nesse sentido, Miller localiza que é um salva-vidas para o sujeito moderno desorientado, pois possibilita uma nova aliança entre a identificação e a pulsão.

Em relçação ao abordado até aqui, podemos deduzir que os jovens que se orientam por esses discursos sociais universalizantes, em geral, organizam sua existência sob uma égide de ferro, fundamento do supereu moderno.

O que nos ensina as duas séries abordadas neste escrito é que uma mulher pode encarnar a heresia das tradições ou empurrar a uma radicalidade ortodoxa. A variação entre o mestre servo da tradição e a coragem – próxima a heresia – é o fio de Ariadna que se desenrola em cada uma das histórias. Histórias onde as mulheres são indíces daquilo que Lacan precisou como acreditá-la – expressão do supereu – e acreditar nela[37] – mais do lado da astúcia e da coragem. "Se chega a conjectura de que o elemento genuinamente reprimido é sempre o feminino, e isso se corrobora pelo fato de que tanto as mulheres como os homens entregam mais facilmente as vicências que tiveram como mulheres, e não como homens[38]".

De fato, os feminismos como as religiões são respostas diante do feminino. Lacan em "O prefácio do despertar da primavera" propõe que a sexualidade faz furo no real, situando que o Nome-do-Pai é mais que um nombre entre outros da deusa branca. " Se trata de uma alusão a Robert Graves, a deusa branca é a deusa mãe das religiões primordiais, anteriores ao Nome-do-Pai[39].

Podemos localizar feministas e religiosas que tendem à ortodoxia da paridade segregativa ou um modo rígido de fazer existir a relação sexuaL que abole a diferença ao rejeitar o feminino. Enquanto que algumas feministas como algumas místicas estão mais do lado da heresia, mais afins com a falta de significante do Outro.

Na inconsistência do Outro é onde cada sujeito debe inventar sua própria forma queer de gozo. O queer designa que o sexo é a insconsistência do ser e de si mesmo, pois " a sexualidade é uma desviação paradoxal de uma norma que não existe (...) A sexualidade é o modo em que estão relacionados (significante e gozo) em sua não relação[40]".

Preservar a diferença radical no modo de gozar dos corpos coloca em relevo seu valor de sintoma na civilizaão e faz mais vivível a vida de um ser falante, portanto, uma política da interpretação que aponte a manter vinculado o corpo com o falante, perspectiva essa que não é sem os feminismos e com a orientação lacaniana.

NOTAS

  1. Freud, S. (1989). "Tres ensayos de teoría sexual". Obras completas: Sigmund Freud, (vol. VII). Buenos Aires: Amorrortu.
  2. Lacan, J. (1973-1974) Clase del 19 de marzo de 1974. Seminario 21. Inédito.
  3. Miller, J.-A., La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, Paidós, Bs. As., 2003, p. 31.
  4. Lacan, J., «Conferencia en Ginebra», Intervenciones y textos II, Buenos Aires: Manantial, p. 128.
  5. Lacan, J. El Seminario. Libro 4. Op. Cit., pp. 259-60.
  6. Lacan, J., «Universidad de Yale», Lacaniana 19, Buenos Aires: Grama, p. 20.
  7. Freud, S. (1989). «El problema económico del masoquismo». O. C. Vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu. p. 170.
  8. Lacan, J., ¨El Atolondradicho¨, en Otros Escritos. Editorial Paidós, p 488.
  9. Bassols, M., La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente, Grama, Bs. As., 2021, p. 43.
  10. Lacadée, P., Los sufrimientos modernos del adolescente. UNSAM edita, 2017, p. 111
  11. Lacan, J. (1975) "Jornada de los cárteles de la Escuela Freudiana de París". Inédito. http://elpsicoanalistalector.blogspot.com/2010/03/jacques-lacan-y-otros-jornada-de-los.html
  12. Laurent, E. Entrevista a Eric Laurent, Revista Rayuela 2: http://www.revistarayuela.com/es/002/template.php?file=Notas/Entrevista-a-Eric-Laurent.html
  13. Lacan, J. (2012) El Seminario. Libro 19. ...o peor. Buenos Aires: Paidós, p 13.
  14. Lacan, J. (2012) "El atolondradicho". Otros escritos. Buenos Aires: Paidós, p. 491.
  15. Bassols, M., La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente, Grama, Bs. As., 2021, p. 67.
  16. Zupančič, Copjec y Cevasco. (2013) Ser-para-el-sexo. Ediciones S&P: Barcelona, pp. 62-2
  17. Bassols, M. (2017) "La psicosis ordinaria es la subjetividad de nuestra época, por Zully Flomenbaum". Revista Enlaces 23. Buenos Aires: Grama.
  18. Laurent, E. (2007) "Big felicidad". Conferencia de Eric Laurent. http://jingshenfengxi.blogspot.com
  19. Bassols, M., La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente, Grama, Bs. As., 2021, p. 72.
  20. Brousse, M.-H. (2013) "El nuevo feminismo, lacaniano". http://www.nel-mexico.org/articulos/seccion/textosonline/subseccion/Goce-femenino/742/El-nuevo-feminismo-lacaniano-
  21. Lacan, J. (2005) El triunfo de la religión. Buenos Aires: Paidós. P 79.
  22. Miller, J.-A. (2010) Extimidad. Buenos Aires: Paidós. P 53.
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  31. Miller, J.-A. (2010) "Mujer coraje". https://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9-156235-2010-11-04.html
  32. Em su libro, Atwood explicita que se ha inspirado en la apropiación de niños acontecida en nuestra última dictadura cívico militar.
  33. Brousse, M.-H. (2020) Lo femenino. Tres Haches: Buenos Aires. P 24
  34. Trabalho a expansão do evangelismo neo-petencostal no artigo "o êxito religioso" publicado na Revista Lapso 5: http://matpsil.com/revista-lapso/portfolio-items/battista-el-exito-de-lo-religioso/
  35. Lacan, J. (1973-1974) Clase del 19 de marzo de 1974. Seminario 21. Inédito.
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