DE UM FIO SOLTO À PEQUENA MÁQUINA DE ENODAMENTO
_Paulina Salinas Olivares

Obra: "Gramíneas al sur del sur"
Artista textil: Analía Gaguin

Sonho e fantasia nas crianças

Uma das propriedades do analista é saber ler, e se esperaria que essa propriedade de saber ler se transferisse para o analisante, destaca Miller em Ler um sintoma. Mas no caso do trabalho com crianças, que estão, em tempo real, imersos no tecido do mal-entendido estrutural, como ler, aí, nesse tempo inaugural do tecido do infans? Tempo vital de estruturação, onde essa trama do tecido vai tecendo seus enredos, suas cores, seus enodamentos, ou não, ainda. Miller, no Prefácio do livro El inconsciente del niño..., destaca a noção do inconsciente real na prática com crianças, esse inconsciente real como o impossível de suportar. Assinalando que tendemos a estar mais acostumados com a prática do deciframento, aquelas que produzem sentido. Entretanto, "também está o que faz furo, o que está a mais, o que faz tropmatisme ou troumatisme [...] O parlêtre se encontra ali diretamente, cruamente, confrontado com o real, sem interposição do significante - que é cataplasma, unguento, medicamento -."[1] A prática analítica com crianças pequenas, antes do período de latência, ou seja, antes da repressão, nos oferece a oportunidade de receber e intervir, "quando a defesa ainda não cristalizou. Tal situação oferece uma oportunidade que é preciso aproveitar."[2] A oportunidade de estar neste tempo de constituição implica poder ler que "o sujeito sai esmagado de seu encontro com a linguagem, sepultado sob o significante que o preenche. Ele renasce, born again, do chamado feito a um segundo significante. Está aí entre dois, reprimido, deslizando-se, ek-sistant, sujeito dividido e que se divide. Se o analista consegue se fazer esse segundo significante, consegue milagres com a criança."[3]

Qual a função do analista, aí - considerando esse tempo de encontro com a linguagem, de sepultamento, nesse significante que o preenche, S1? Se fazer esse segundo significante, se fazer esse dois, se fazer S2, para que o sujeito se divida e emerja? Qual a relação no que diz respeito ao sonho e à fantasia?

Umbigo

Os sonhos costumam ser um ponto de encanto e fascinação quando se espera deles um sentido, entretanto, ocasionalmente eles podem se tomar de angústia, medos e terrores que, longe de encantar, angustiam ao entorno, sobretudo quando isto ocorre nas crianças. Pesadelos e despertares à meia noite costumam ser motivos de consulta frequente por parte dos pais. Silvia Salman, em um artigo intitulado El escándalo del cuerpo hablante[4], menciona que frente ao escandaloso que o sonho tem, e seus "modos insuspeitos em (que) o sonho tece seus fios [...], o impulso a interpretá-lo não nos faz esquecer que o sonho mesmo é interpretação de um real que empuxa. Quanto mais escandaloso, talvez mais próximo desse real que pretende-se desconhecer [...]"[5]. Dado clínico relevante, que alguns sonhos que nos aproximam a um real tem, e outros não. Será preciso saber escutar, caso por caso.

Ocasionalmente, os sonhos das crianças nos permitem, - se nos interessamos por eles - dada a proximidade ao momento de encontro com alíngua familiar, de acessar a esses pontos de despertar, mais próximo do umbigo do sonho, que "é justamente o ponto de onde sai o fio"[6]. Se o sonho, por estrutura, dá conta e conta com seu umbigo, ponto de nó, cicatriz, que constata a existência de um furo, é justamente desde aí onde sai o fio que começa o tecido do inconsciente. Os sonhos, como lugar da Outra cena, dão acesso a uma possibilidade de narração deste, contanto que se tenha uma orelha atenta que possa ir lendo aquilo que se escreve, e "que se sustenta no tecido mesmo do inconsciente... ler essa língua singular no relato do sonho, ... em função da maneira em que alíngua foi falada e escutada por esse ou aquele em sua particularidade, implica permanecer no campo da linguagem, mas tomando como regra sua parte material..."[7]

Considerar a escuta analítica, essa que lê e que pode circular entre o sentido e a insistência material do significante, sem se fascinar por uma ou por outra, nos permite fazer um bom uso e leitura desses dois níveis de escuta. Orientação segundo o tempo de constituição subjetiva, onde se está em tempo de construção do tecido, podendo acompanhar esses pontos de furo, ou esmagamento que - em ocasiões - podem impedir a fiação necessária e constitutiva, se fazer S2 caso essa fiação não esteja podendo dar um segundo ponto?

Pequena máquina de enodamento

Para Melanie Klein, o trabalho analítico confirma a construção inicial de fantasias por parte dos bebês e a considera como a atividade mental mais primitiva. Lacan, por sua parte, tomou o que Klein sinalizou e considerou "a fantasia como uma pequena máquina por meio da qual se efetua um enodamento entre a gramática do inconsciente e sua dimensão pulsional"[8]. E Miller destaca "a função nodal da fantasia... onde se conjuga imaginário e simbólico de modo tal que é uma janela do sujeito ao real"[9].

Entre o extremo das primeiríssimas fantasias e a função nodal da fantasia, vale se perguntar como o analista praticante pode acompanhar esse tempo onde tal enodamento ainda não ocorre. Retomo as perguntas do início e diria então: acompanhar a emergência do sujeito por vir, se fazer esse segundo significante e, quando seja o momento, acompanhar o enodamento com a dimensão pulsional que, ocasionalmente, poderia estar ainda em processo de separação, a-bordando-a.

Fios, agulha, tecido

Ao tecer, se não se enoda o fio, a costura se solta, deixa escapar... Será caso por caso que o analista praticante poderá acompanhar, se ele é convocado, na busca e leitura a-medida dos fios preciosos de cada parlêtre que o venha visitar, acompanhando o acionamento da pequena máquina necessária que enodará e fixará a realidade. Sonho e fantasia poderão nos orientar.

Tradução: Daniela Nunes Araujo (EBP/AMP)
TÍTULO ORIGINAL: De un hilo suelto a la maquinita de anudamiento. Sueño y fantasma en niños.

NOTAS

  1. Miller, J.A. Prefacio, em: El inconsciente del niño, del síntoma al deseo de saber. Bonnaud, H. Edición digital: RBA Libros, S.A., 2018. Tradução livre.
  2. Ibid.
  3. Ibid.
  4. Salman, S. El escándalo del cuerpo hablante, em Textos de Orientação para o Congresso O sonho, sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano. Disponível em: https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-escandalo-del-cuerpo-hablante.html
  5. Tradução livre.
  6. Lacan, J. "El ombligo del sueño es un agujero. Jacques Lacan responde a uma pergunta de Marcel Ritter", em: Revista Freudiana, n. 87: La discordia entre los sexos. Barcelona, RBA Libros, 2019, p. 99. Tradução livre.
  7. Salman, ibid.
  8. Roy, D. Hacia la 8a Jornada del Instituto Psicoanalítico del Niño, SUEÑOS Y FANTASMAS EN LOS NIÑOS. Tradução livre.
  9. Miller, J.A., O ser e o Um, aula de 2 de fevereiro 2011, inédito. Tradução livre.