A CRIANÇA DESGRAÇADA
_Patricio Alvarez Bayón

Lacan analisa a vida e a obra de André Gide insistindo em sublinhar um ponto: as consequências subjetivas de não ter sido desejado pelo Outro.

Não se refere com isso a não ter sido desejado em termos conscientes - como por exemplo na figura da gravidez não desejada, pouco desejada ou desejada com ambivalência, etc. - mas que no Outro não houve um desejo inconsciente com relação a essa criança. As marcas de não ter sido desejado propõe Lacan, permanecerão para sempre na constituição subjetiva: "foi a experiência do que nos ensinou o que comporta de consequências em cascata, de desestruturação quase infinita o fato de um sujeito, antes de seu nascimento, de ter sido uma criança desejada ou não."[1]

Em tempos atuais, marcados segundo Lacan pelo discurso capitalista, a declinação do nome do pai e ascensão ao zênite social do objeto a , o lugar dos pais e o lugar da criança na estrutura modificaram-se consideravelmente.

As modificações familiares são múltiplas, com variações e figuras distintas que não tentaremos abarcar, mas interessa remarcar uma dessas figurações familiares, pela frequência com que surgem clinicamente, que é a observação de pais e mães que não encarnam o lugar do Outro desejante. Pais e mães que simplesmente não têm um desejo com relação à criança.

Diante dessa frequência clínica, iniciamos uma investigação sobre o lugar da criança não desejada, localizando por um lado como Lacan situa suas características e os conceitos que o demarcam e por outro, algumas de suas consequências clínicas.

 

Um desejo não anônimo

Em Nota sobre a criança, Lacan apresenta de modo estrutural, a função da família, a função materna e a função paterna. Dizemos que as apresenta de modo estrutural, porque não se refere às mil e uma formas diferentes de habitar a função paterna ou materna, nem as milhares de figurações familiares possíveis mas que reduz essas funções a seu traço mínimo, o traço único que define essas funções, tal como se fosse uma função em matemática, um f(x). A função está definida por apenas um traço, o x se refere às mil formas de habitar esse traço. Vejamos quais traços definem essas três funções:

– A função familiar se define especificamente por ser aquela que transmite um desejo não anônimo[2]. Deve-se diferenciar essa fórmula em três elementos: que tem uma função de transmissão para a criança; o que se transmite é um desejo de alguém que encarna o lugar do Outro - por isso é não anônimo - e que esse desejo deve ser singularizado na criança. Com respeito ao anônimo, Lacan se refere às experiências sociais tais como as crianças criadas comunitariamente ou hospitalarmente. O desejo anônimo implica que não haja transmissão do desejo.

– A função materna é a da transmissão dos "cuidados que trazem a marca de um interesse particularizado" , isto é, "um desejo pela via de sua falta"[3]. Isto também implica separá-lo: específica-se pela função dos cuidados que têm a marca de um desejo, com a condição de que nesses cuidados haja uma falta, que se refere do lado materno à falta fálica, que assegura o desejo materno para a criança.

– A função paterna é a de "uma encarnação da lei no desejo"[4] , o qual implica que seu desejo deva funcionar para a criança como o que lhe permite, em algum momento, separar-se do gozo materno.

A redução que faz Lacan do traço que define a função, permite que essa função seja ocupada de múltiplas formas e permite a psicanálise lacaniana sair das fórmulas clássicas sem nenhuma nostalgia da família tradicional burguesa.

Assim, a função do cuidado materno pela via da falta desejante pode ser cumprida por uma mãe, um pai, uma tia, uma avó, um avô, uma professora, uma enfermeira ou qualquer um que cumpra esse f(x). A função cuidado é ampla e pode remeter tanto aos cuidados primários do bebê, como dos cuidados vitais da alimentação e abrigo, como dos cuidados pela via do amor. A função de conjunção do desejo e da lei pode ser ocupada por um pai, uma mãe, um avô,uma avó, um tio, um professor ou qualquer um que cumpra esse f(x).

O desejo não anônimo também pode ser transmitido em uma família monoparental, homoparental, multiparental, juntada, ou todas as combinações possíveis: uma mãe sozinha, duas mães, dois pais, uma mãe e um pai, uma mãe e uma avó, combinações diversas, mas em qualquer delas que se transmita um desejo não anônimo duplo: o de um cuidado, com a condição de uma falta desejante e de um desejo unido a uma lei.

Indaga-se: o que ocorre se uma dessas condições não se cumpre? o que ocorre se a criança não é desejada em qualquer das três funções encarregadas da transmissão do desejo?

Produz-se a figura da criança não desejada,

Aclaremos essa figura: assim como falamos de um traço que define essas três funções. Lacan, no Seminário 5 fala da função, "criança desejada", como uma função que estrutura o desejo e o gozo de um modo permanente e ao longo da vida. Assim, ele diz: " Este termo é essencial. É mais do que ter sido, neste ou naquele momento, uma criança mais ou menos satisfeita. A expressão criança desejada corresponde à constituição da mãe como sede do desejo, e toda dialética da relação do filho com o desejo da mãe que tentei demonstrar-lhes e que se concentra no fato primordial do símbolo da criança desejada"[5]

Lacan o chama um símbolo, um termo, uma função, o qual implica que não deve imaginarizar-se: não se trata de não ter sido querido, mas de que não se tenha cumprido a transmissão de alguma dessas três funções que produzem a função da criança desejada.

Como diz Lacan na citação das três funções, a materna é a que tem um papel principal com relação a criança desejada ou não desejada, embora as outras duas também sejam determinantes.

Lacan assinala em três momentos as consequências desestruturantes de não ter sido desejado e nos três momentos se refere a Gide, que por razões de espaço não poderemos desenvolver, apenas diremos que sua análise parte de diferenciar entre o amor e o desejo, explicando que Gide foi amado por sua mãe mas não desejado.

Assim podemos ver uma das formas que toma o não desejo na mãe: a mãe de Gide o amava, mas seus cuidados não se sustentavam na falta, na causa do desejo, e portanto é uma criança não desejada.

Lacan assinala três consequências clínicas no caso, que me interessa desenvolver porque situam três figuras clínicas diferenciadas, em crianças com manifestações semelhantes entre si. Estas três são: a criança desgraçada, a criança melancólica, a criança terrível.

 

A criança desgraçada

Lacan assim designa Gide tomando uma descrição de seu biógrafo que o descrevia como um menino desgraçado. Interessa para nós esse termo porque Lacan joga alí com duas descrições do mesmo: a desgraça da criança, ou seja o destino que o tocou por não ter sido desejado pelo Outro, mas também o que se refere a criança sem graça. Essas duas acepções assinalam, como dissemos, a desgraça que provém do Outro, a função materna que não se cumpre por não transmitir um desejo.

Assinala, por outro lado, sua consequência sobre o sujeito como sujeito sem graça. Essa graça remete ao que Lacan trabalha com relação ao primeiro tempo do Édipo, no qual a criança aprende a atrair o desejo do Outro, a fazer graças, a funcionar como engodo: " essa é a etapa em que a criança se engaja na dialética intersubjetiva do engodo. Para satisfazer o que não pode ser satisfeito, a saber, esse desejo da mãe que, em seu fundamento, é insaciável, a criança, por qualquer caminho que siga, engaja-se na via de se fazer a si mesma de objeto enganador."[6] Estes termos, graça, engano, engodo são os que Lacan usa para situar como a criança marcada pela tríade mãe-criança-falo, tenta fazer-se amável para atrair o desejo do Outro.

Desse modo, a criança desgraçada não só é aquela que não funcionou como causa do desejo do Outro, mas também aquela que por essa razão tampouco aprendeu a captar o desejo do Outro, a fazer-se amável para ele.

Encontramos frequentemente na clínica dessas crianças sem graça, desvitalizadas, tímidas, isoladas, para as quais não é fácil desenvolver a partir da intervenção analítica, um saber fazer com relação ao desejo do Outro. Habitualmente colocam essas crianças no plano da inibição, mas a designação de criança desgraçada permite melhor situar a consequência em um sujeito de não ter sido desejado: esse sujeito sem graça, sem sedução, que não tem um saber fazer para causar o desejo do Outro.

 

A criança melancólica

Lacan designa outra consequência de não ter sido desejado: o que chama a melancolia como dor de existir. A definição de melancolia que utiliza aqui não é a mesma que usa em outros lugares designando a psicose melancólica, mas que refere a um termo mais amplo, que poderia incluir além da psicose outras formas que designamos habitualmente como depressão.

Essa melancolia, dor de existir, é definida por Lacan como o que resta na existência quando o desejo foi esvaziado: "essa dor se aproxima, na experiência, dessa dor de existência, e tudo, no excesso do sofrimento, tende a abolir esse termo inerradicável que é o desejo de viver. Essa dor de existir quando o desejo já não está mais presente, …"[7]

O menino Gide não sustentado por nenhum desejo do Outro vive entre o isolamento, a mortificação e suas fantasias de morte. O falo como significante do desejo, produto da identificação aos títulos paternos está impedido na medida em que o sujeito não se situou inicialmente como falo imaginário materno, isto é, não se situou como criança desejada. Sua consequência é a ausência do desejo que não vivifica o corpo e o deixa submerso na dor de existir.

Encontramos na clínica, sob a figura da depressão infantil, as características da melancolia como dor de existir: o corpo caído, desvitalizado, as fantasias de morte, o desinteresse generalizado, ou melhor, ele está impedido em decorrência do desinteresse específico com relação ao social, à escola, ao jogo,etc.

 

A criança terrível

Daniel Roy em seu artigo sobre a criança terrível, diz: " quando a criança não pode ser causa do desejo e resto de gozo, encarna na família a figura da criança terrível"[8]. Ele emprega muito bem a descrição dessas crianças e o faz localizando múltiplas causas.

Interessa-me aqui destacar dentre as crianças terríveis uma forma específica: as crianças terríveis como consequência de não terem sido desejadas, de não terem sido recobertas pelo desejo do Outro, cuja posição subjetiva toma a forma do fazer-se rechaçar. Os pós freudianos chamavam a essa posição de identificação com o agressor.

Trata-se assim de um tipo especial de crianças terríveis. São crianças que, seja por uma identificação ou seja por uma tela fantasmática, se situam na posição não de serem rechaçados, mas de fazer-se rechaçar. Melhor dizendo: por terem sido rechaçados, se fazem rechaçar.

Observamos na clínica dessas crianças terríveis, com características de violência, actings, passagens ao ato, e diante do maltrato que praticam ao semelhante, encontramos na indagação analítica a reversão do rechaço que os constituiu como sujeitos.

A investigação continua e é mais ampla, entretanto por hora, podemos localizar deste modo, as consequências clínicas da posição da criança não desejada: a criança, desgraçada, a criança melancólica e a criança que se faz rechaçar. Cada uma delas situa marcas ao nível do gozo, dessa desestruturação quase infinita de que fala Lacan.

Cabe ao analista a responsabilidade de saber encarnar, na direção da cura, o semblante de um desejo do Outro, que possa tramitar entre desejo, gozo, e as consequências dessa desestruturação.

Tradução: Lucia Mello (EBP/AMP)

NOTAS

  1. LACAN,J. O seminário, livro 5 As formações do inconsciente, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999/ 1958, p. 268
  2. LACAN, J. , "Nota sobre a Criança'' in Outros Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 2003/1969. Pág.373.
  3. Idem.
  4. Idem.
  5. LACAN, J., O Seminário, livro 5, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999/1958. Pág. 268.
  6. LACAN, J., O Seminário, livro 4, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995/1957. Pág. 198.
  7. LACAN, J., O Seminário, livro 6, Rio de Janeiro, Zahar, 2016/1959. Pág. 107
  8. ROY, D., "Pais exacerbados,crianças terríveis"(inédito)