Trabalharei sobre aquelas adolescentes meninas que sustentam com seus pais uma relação infernal centrada em uma agressividade permanente, com um constante enfrentamento cheio de acusações, ciúmes e insultos; efeito violento que entorpece e obstaculiza a vida cotidiana.
Trata-se de um vínculo que se especulariza em cadeia, orientado por uma relação imaginária – ou um ou o outro – na qual não há possibilidade alguma de responsabilizar-se pelos atos.
Esta luta irrefreável com os pais se exibe como uma denúncia permanente. Apesar de ser com ambos os pais, a dependência e a insurreição é com a mãe. Uma criança pode exercer violência sobre um dos pais, mas este ponto é paradigmático da relação mãe-filha.
Neste amor-ódio há algo de insustentável. O mesmo se reencontra com um gozo ilimitado, onde a pulsão de destruição se confirma.
Tomarei dois casos, no primeiro a consulta se desencadeia quando a mãe, que não teve um ir e vir mais além de S em seu desejo, ela introduz um namorado que cai como um intruso, gerando um ódio irrefreável na menina.
Nesta posição imaginária, S tampona sua imagem com uma identificação, uma indução imaginária, ligada ao autoritarismo e ao controle do pai.
Os dois casos que coloco neste trabalho revelam relações especulares que determinam uma falha na simbolização. Em S a mãe não gera enigma, a sustenta com o olhar, mas não há curiosidade. Aparece uma identidade onde ela se encontra presa em uma imagem. O Outro não é suposto saber e o discurso se torna vazio.
No segundo caso, M, se trata de uma jovem de 14 anos, enredada em uma briga sem fim com a mãe e uma constante demanda de amor.
Em M o saber ocupa um lugar rígido, sem gerar curiosidade nem interesses particulares. Ela repete, mas não incorpora os significantes do Outro para articulá-los em um trabalho pessoal.
No primeiro caso não há intervenção do pai, S toma o lugar do Outro impondo a lei do possível; por outro lado, M vê o pai e a mãe enlaçados em um vínculo muito forte; há um pai muito apaixonado pela mãe. Isto nos remete ao caso da jovem homossexual, onde o que predomina é a intensidade imaginária e demandante com a mãe.
Nos dois casos se verificam as consequências destas relações do aprisionamento de amódio e da falta de simbolização para usar os recursos do Outro familiar e escolar.
Estas relações infernais sustentam um gozo que não se rejeita, razão pela qual se torna inacessível a entrada no desejo.
A mãe de S se encontra fechada diante de sua filha. S não tolera a existência do namorado da mãe. Seus pais se divorciaram quando ela tinha 2 anos. A separação, do lado do pai, teve um caráter violento. A mãe conta que a partir deste momento, sua relação com S foi a de estarem totalmente agarradas.
Até os 12 anos S não tinha conhecido nenhum dos homens com os quais sua mãe manteve algum vínculo depois do divórcio. É a primeira vez que a mãe apresenta um homem como namorado. S não tolera essa presença e irrompe nela uma loucura que se volta toda para sua mãe. A relação de S e sua mãe era de um constante imiscuir-se em sua vida e um interesse cego por ela.
Quando a conheço ela me diz que não entende porque sua mãe tem que ter um namorado. Conta-me que sua mãe é diabética e que é ela que sabe como cuidar dela. Explica-se sobre este ponto de forma exagerada enquanto que, por seu lado, a mãe diz que sua diabetes está absolutamente controlada e regulada por ela mesma. Ambas se apresentam como se fossem Um, parecendo um casal.
O pai tem uma presença controladora, rígida e autoritária, quando vai à sua casa discutem sem parar. S tem uma posição ativa de provocação e o pai permite essa dinâmica.
Na relação de S com sua mãe, uma é objeto da outra. Aqui se repetem sombras e reflexos do vínculo da mãe com o pai. O controle é irrefreável. O pai liga continuamente para saber o que a menina está fazendo, como se alimenta, etc…
S se apresenta sempre com uma atitude autoritária diante da mãe, uma relação passional de amor-ódio. Apesar disso, nas relações com seus pares ela não se responsabiliza por sua agressividade.
Ainda que a menina tenha um alojamento intenso na mãe, a aparição de um terceiro – desejo da mãe – provoca violência e rejeição.
Nas entrevistas S não fala, simplesmente afirma que sua mãe não pode ter um namorado, que ela tem a ela. Não fala de outro tema nem se faz perguntas. A fresta aparece quando começa a se interessar pelos objetos do meu consultório, os nomes, o que são; especialmente quando em uma entrevista me pergunta se em meu consultório de crianças eu tenho o jogo Quem sou? Isto parece notável para quem não dispõe desta pergunta em sua subjetividade.
Em outra entrevista ela fica olhando um objeto e me pregunta: o que é? Respondo a ela e lhe pergunto se ela sabe do que se trata? Ela me responde que não, então eu lhe sugiro buscarmos juntas a resposta no YouTube.
Fica difícil fazer surgir a curiosidade. Sempre seus comentários mostram uma nebulosa. A única vez que mostrou interesse em vir, furiosa, foi para me pedir que interviesse para conseguir uma permissão de seu pai. Ela queria que ele a deixasse fazer uma viagem com sua mãe, apesar de que ele dizia que não podiam viajar juntas até que ela tivesse 14 anos, devido à diabetes de sua mãe. A decisão do pai era taxativa e persecutória; diante disto advogados tiveram que atuar para tornar a viagem possível.
Minha intervenção foi precisamente que S pudesse organizar algo para ser escutada pelo pai, porque até esse momento o único laço que existia entre eles era a briga. Finalmente S consegue organizar essa viagem desejada.
Meu trabalho incluiu entrevistas com a mãe, que acabou por dar-se conta de que a irrupção em questão não havia sido a do namorado, mas a dela mesma, como mulher desejante, (antes se tratava de duas meninas coladas). Assim se reabre uma mediação com o pai cuja intervenção até esse momento havia sido apenas crítica (com ela e com a menina) e tinha sido regida por controles, perseguições e ameaças.
M é uma jovem que vive no exterior; sempre teve com a mãe uma demanda irrefreável, a qual a mãe acedia depois de grandes brigas escandalosas. De sua parte, o pai tentava intervir quando ela lhe pedia ajuda para o colégio. M é uma menina competitiva, boa aluna, com uma exigência feroz, mas com pouca compreensão e reflexão.
Seu pai pensa que ela tem seus traços, mas se enfurece quando ao lhe oferecer ajuda tudo termina em uma briga na qual M não aceita o que ele tem para oferecer. Quando ele intervém nas discussões de M com a mãe, a mãe não faz entrar o "não" do pai, porque isso gera uma situação de choro e de muita culpa.
Há intervalos muito curtos de não agressividade na vida familiar. Suas amigas são as que funcionam como ideal. Se a escolhem para cursar em níveis superiores aos de suas amigas, ela não quer porque as mesmas lhe demandam isso.
A palavra materna não a convoca, mas sim a rivalidade; trata-se da "demanda que insiste, pia e esperneia" [1].
É notável a relação harmoniosa e ativa que seus pais sustentam entre si. Pensam até que quando M for para o College será um alívio para eles. Isto desespera de maneira culposa o pai. Por outro lado, este pai não sabe como recompor suas palavras, as que por outro lado não chegam nem tocam a M.
É difícil para M gerar um lugar de transferência. A separação de seus pais quando ela ingressar no College será árdua, mas é necessário que algo apareça mais além de sua alienação. Em seu discurso já está tudo montado antes e, sua posição é aparecer incomodando.
Em ambas as meninas se vê como não podem passar para o narcisismo do desejo[2]; Lacan toma esta expressão para diferenciá-la do estádio do espelho como célula primária do eu.
Não acontece este avanço em direção ao Outro, o desejo e seus objetos não aparecem.
O paradigmático no caso de M é mostrado pela loucura e pelo transbordamento que se produzem na separação. Isto ocorre quando ela tem que partir para o College, o que a distancia dos pais e exige dela uma independência que até este momento não existia.
O College que ela frequenta, tem tutores para todo tipo de consultas, quer se tratem de temas escolares ou pessoais. Mas M recusa estes recursos, ela sempre busca a resposta em seus pais, aos quais tampouco pode escutar.
Desde o primeiro dia de sua chegada ao College, M não para de chamar seus pais; ela não gosta de sua companheira de quarto, não sabe como comprar um livro; sua incapacidade é atuada a cada minuto. No social e com a aprendizagem acontece com ela a mesma coisa que acontecia antes; evita a compreensão, a conexão.
Nestas relações sem nenhuma simbolização, o Outro tem que estar aí para responder a todas as perguntas. Essas instituições exigem certo grau de independência que esta menina não conheceu em sua criação. Esta jovem com seu "não penso" invade a sua vida. Até agora era auxiliada e os gritos e brigas formavam o laço.
Liga para comentar perguntas que são passíveis de serem respondidas apenas quando são escutadas. Há uma assunção de desamparo total. Mas esta não ocorre diante da decepção do Outro, mas para demonstrar o lugar que ela tem. M angustia a mãe sem cessar, ainda que caiba dizer que há claramente intervalos nos quais consegue coisas; entretanto, rapidamente conta algo que está acontecendo com ela, que a faz sofrer de maneira insuportável.
Fala-se muito de pais superprotetores, mas é interessante pensar qual o laço que essa união sem intervalo implica para incorporar os significantes existentes que não operam.
Estas meninas não podem articular o ficcional; o simbólico é pobre. Compreende-se isso quando vemos a inserção de jovens que estudam e trabalham, mas que o fazem de maneira automática. Aqui é claro o que dizemos como psicanalistas, não há pergunta, não há enigma, falamos com alguém cuja certeza é seu cartaz e seu "não escuta" um dom de prescindir.
É claro que estão amarradas a um gozo do Um que se apresenta como poder. Não há possibilidade de renunciar ao gozo do tormento e do clamor. O trabalho não é sem os pais, os quais deveriam suportar a falta de resolução e de resposta, o silêncio que não foi instalado na separação.
Em ambos os casos é claro, quando na simbolização, a incidência paterna não entrou. Trata-se de esperar o aparecimento de um sintoma e, também, a entrada do amor como contingência da exogamia.
A aposta é no lugar terceiro do encontro com o Outro na instância de um dispositivo que inaugure um novo encontro.
Tradução: Cristina Drummond (EBP/AMP)
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