A incidência das tecnociências na filiação, juntamente com as novidades que se introduzem, a partir do plano jurídico, explodiram as configurações familiares. Essa pluralidade tem levado a que se fale, não de parentesco, mas de parentalidade, para se referir a todos os tipos de famílias. Não sabendo se estamos lidando com pais, mães, pais e/ou mães de adoção, gestação, barriga de aluguel, se é um casal homossexual, se a criança é criada apenas por um ser falante, a parentalidade nos permite nomear esse lado da família, englobando, assim, a sua pluralidade.
Em nossa época, a voz de comando não é do S1, mas o que comanda é o gozo, que dita a lei acima de todas as formas de Ideal. A família não escapa a esse regime, pois o que a funda, já não são mais os pactos de aliança, os laços de parentesco nem o Ideal, mas a criança, que carrega sobre seus ombros, construí-la e tentar distribuir os nomes de pai e mãe. E não há ficção jurídica, científica, sociológica, literária ou de coaching que possa aliviá-la de semelhante peso. Sejam quais forem as formas dos pais de formar um casal, o nascimento definirá a parentalidade, de modo que a criança manterá a parentalidade e a sexualidade juntas. Assim, mudou o estatuto da família, e também o da criança, que fica reduzida a ser a criança objeto da família e também – por que não? - da civilização: a criança como objeto a liberado.
Mas, acontece que "a criança como objeto enlouquece as normas, faz aparecer o personagem ficcional das convenções". É por isso que surgem os discursos que tentam construir ficções parentais[1], que ofereçam aos pais "desesperados" e "desbussolados", um saber fazer com o filho. A hipermodernidade, então, ao revelar o caráter de semblante que os laços familiares têm, por um lado, cospe um significante no real, um neologismo como a parentalidade ‒ as "pães"[2], em uma versão mais latino-americana ‒ mas, por outro, nos mostra como "sobre essa inconsistência da família pós-moderna em relação ao simbólico, atacam os discursos de apoio à parentalidade"[3].
Gostaria de me deter na chamada criação respeitosa e a criança do apego[4], pois, cada vez mais, se vê famílias nos consultórios, famílias que decidiram adotar esses métodos, com as consequências que às vezes se desprendem deles. Mães angustiadas ‒ pela falta da falta? ‒, filhos angustiados, ou às vezes sobrecarregados, que levam a marca de uma separação bastante difícil do Outro materno.
A criação respeitosa parte do suposto que os padrões tradicionais ou costumes sociais confundem os pais e são, frequentemente, violentas. Por isso, propõem uma forma de educar as crianças, um pouco diferente dos standards conhecidos da tradição. Baseia-se na teoria do apego de John Bowlby e suas quatro características fundamentais: a manutenção da proximidade; o refúgio seguro (oferecer uma figura, para sentir segurança e comodidade); a base segura (que a criança possa explorar o ambiente sem sentir perigo); a angústia da separação que, segundo eles, "não é uma característica gerada pelo sentimento de apego, mas por sua ausência". Exatamente o oposto que sustentaríamos a partir da psicanálise lacaniana. Os 8 B da criança do apego do Dr. William Sears ‒ princípios básicos que começam com B em inglês ‒ se desprendem dessas quatro características, entre as quais encontramos o fomentar contato com a mãe, para criar laços afetivos desde o nascimento, a defesa intransigente e como dar lugar à amamentação – mais além do desejo da mãe amamentar ou não - levar o bebê para o abrigo do pai e da mãe, dormir com o bebê (co-leito), que os dois membros do casal ‒,se houver,‒ estejam envolvidos na criação e no cuidado do bebê, em atender sua educação e nos valores que desejam transmitir, entre outros.
Como afirma Lacan, "o que convém ser indicado aqui é, porém, o prejuízo irredutível com o qual se grava a referência ao corpo, enquanto não for levantado o mito que cobre a relação da criança com a mãe", "fantasia postiça da harmonia instalada no habitat materno"[5]. Mais do que harmonia, então, entre a mãe e o filho, o risco é que o corpo do filho leve a marca do gozo da mãe e não, do desejo. Quando além da criança, não há algo que responda pelo gozo da mãe como gozo de uma mulher, é o corpo da criança que pode vir a responder por esse gozo. Se não é o falo que transfere esse valor de gozo fora da criança em um gozo sexuado, o corpo da criança funcionará como condensador de gozo, como o inanimado do objeto para o Outro materno. Ou como completamente transbordado por um gozo que não pode ser regulado.
O ser falante é filho do malentendido de dois que não se entendem nem se escutam[6], padece do trauma de ser ou não desejado, portanto, nenhuma ficção sobre como criar filhos, ou como nomear a família poderá dar conta desse ponto de real, de desejo e gozo, do qual nasce uma criança, desse real de desencontro daqueles que conspiram para a reprodução, seja qual for a quantidade ou o método escolhido. No mal-entendido entre os gozos, onde a proporção não se pode escrever a proporção entre gozos masculino e feminino, aloja-se a desunião estrutural entre aqueles dois que falam: a não relação sexual. Nesse sentido, a criança habita o lugar de sua desunião, habita a hiância irredutível do diálogo impossível entre os sexos.
A parentalidade, como sintagma, pode conduzir a apagar algo mais do que a diferença entre os sexos, pode obturar a diferença da singularidade da enunciação do ou dos parlêtres que assumem a criação de um filho. Por outro lado, corroboramos com alguns discursos sobre a parentalidade que podem fazer consistir, os laços de dependência, ou substituir os significantes particulares que se transmitem nesse grupo familiar[7]. Só alojando o malentendido, a família poderá fazer a transmissão do que convém ao ser falante: a de um corpo como portador da dignidade do sujeito em sua ineliminável singularidade, atravessado pelas marcas do desejo e pelos sinais de gozo daqueles que o receberam em seu acesso à vida.
Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes (EBP/AMP)
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