Pensei em trabalhar três perspectivas que vão me permitir cernir o que lemos em nossa prática cotidianamente: o neologismo parentalidade, a questão do pai, eu diria de modo mais justo, com que tipo de pai nos encontramos hoje, e que incidências ou efeitos podem ser lidos nos filhos deste novo século.
Atravessamos ao longo do ensino de Lacan distintos modos de interpretar a família. Estas configurações têm a ver não apenas com fatos históricos e sociais, já que sua estrutura mudou de maneira relevante a partir da metade do século XX.
Lacan nos lembrava em "Os complexos familiares" que esta crise sobre a família foi o que levou Freud no final do século XX a criar a psicanálise que dispersava o lugar do pai; conseguiu situá-lo como uma invariante e como um mito do mal estar na cultura. O enlaçamento entre o sujeito, sua família e a psicanálise é estreito; é mais do que isso, Lacan nos diz que os analisantes só falam disso[1].
A família era ou ainda continua sendo uma resposta simbólica ao real do sexo, pelo fato de que não se pode escrever a relação sexual entre um homem e uma mulher? Por não se poder escrever simbolicamente a relação homem-mulher, a família escreve ou escrevia a relação pai-mãe?
Lacan reconfigurou o discurso analítico para abordar estas novas formas de família. A "Nota sobre a criança" de 1969 é um breve e significativo texto no qual ele situa a família como resíduo, já que ela ainda persiste e denuncia os fracassos com os quais se acreditou que ela poderia ser substituída. Aqui, nos diz Éric Laurent, Lacan situa a família como real onde o gozo está em primeiro lugar.
O real da família se encontra na particularidade da função do pai e da mãe, ou seja, naquilo que determina em cada um o modo de gozo com o qual vai realizar sua função. Daniel Roy[2] nos diz que a família resíduo atual se constitui pela conjunção dos dois conjuntos, o de "os pais", os falantes, e as crianças. Na interseção situa o mal entendido e o balbucio do gozo dos corpos, cuja transmissão de um desejo não anônimo se dá no melhor dos casos.
Em 1968-9, Lacan apresenta o avesso do Nome-do-Pai como garantia. O pai não é mais do que um sonho do neurótico e a função Nome-do-Pai pode ser sustentada por outros personagens além do pai de família. Mas não é uma função que surge simplesmente da interdição, de proibir o incesto. Colocar um freio no gozo é possibilitar ao sujeito uma via que não seja a de um empuxo a gozar mortal, é autorizar uma relação confiável com o gozo. O pai resíduo é uma função, sua vantagem é que "não define um todo, mas um domínio de aplicação"[3], já que por falta de saber o que representa um pai, se aborda um furo e é necessário que uma letra ocupe esse lugar para que haja função F (x), que a distinga do pai de família. Ser pai é ser um dos modelos da função. É o instrumento que permite manter juntos R-S-I, é o um x um que se tornou pai.
O texto de M. H. Brousse (M.H.B) "Um neologismo da atualidade: a parentalidade"[4], produz uma leitura mais à altura de nossa época do que a "Nota sobre a criança", e situa uma simetria e uma igualdade entre o pai e a mãe no que concerne a ordem familiar. Há um apagamento entre as funções que antes estavam diferenciadas. A parentalidade inscreve uma similitude e uma equivalência onde antes havia relação. Torna-se assim evidente o axioma lacaniano "não há relação sexual".
Além do apagamento da diferença entre a função paterna e a função materna e do intercâmbio da autoridade e os cuidados, é a diferença homem-mulher o que também foi tocado.
A família (parent) é então ela própria uma função que vem substituir o pai e a mãe, apagando o resto real que assegurava a diferença. O real da reprodução se encontra separado do simbólico da filiação. Para que seja uma família parental é necessário o objeto criança em seu duplo estatuto de objeto a e de sujeito de direito.
M. H. B. diz que nesses termos a parentalidade tende a anular a diferença que Lacan localizava no Seminário RSI, onde situava um circuito diferente da relação de respeito e amor de um filho com seu pai, que passa por fazer de uma mulher o objeto a causa de seu desejo.
E se pergunta então onde se refugia a diferença. Responde que "se situará em função dos modos de gozo predominantes e permanentes nele ou nos pais, mais do que nas identificações aos tipos ideais dos sexos".
Quero fazer uma conversa entre o texto de M.H.B e a última conferência de Éric Laurent na UBA[5] onde situa a parentalidade como o real da família e a função do pai como sintoma, instrumento, para tratar o gozo mortífero no qual um filho pode estar imerso.
Éric Laurent dá todo o seu lugar à enunciação de Lacan no seminário RSI, situando a pai-versão paterna no nível da particularidade de seu gozo, de seu sintoma, que faça de uma mulher única, o objeto a causa de seu desejo. Assim o pai vai alcançar o respeito e o amor de seus filhos. Ele nos diz: o pai que encarna o modelo de uma função que permite a seus filhos uma relação confiável com o gozo.
Laurent localiza que não se trata de prescindir do pai, mas de situar o pai em sua existência particular, insiste, não ideal, nem verdadeira, nem universal. É o pai que em ato dá acesso ao real do gozo em jogo e assinala seu papel nas famílias recompostas. Como ele atinge o real do gozo? Com seu carisma, é cada um que pode ou não tê-lo, para o positivo ou para o negativo. Se não é o pai da família, se encontrará alguém que impacte a família. Não é necessário que seja o pai carnal.
Minha prática também me permite inferir que hoje nós assistimos ao que situo como uma ausência ou declinação da resposta perversa, como causa do impasse que a posição masculina vem sofrendo e o empoderamento do lugar da mulher na civilização. É neste ponto que me interessa destacar a advertência de Laurent das consequências que isso produz na criança como um efeito psicotizante[6], distinguindo-o da psicose em geral. Escutamos cada vez mais em nossas consultas a respeito da presença de crianças enlouquecidas, e a função do analista encarnando um desejo e localizando um sintoma é fundamental como instrumento de grampo nestes casos.
Lacan dizia em "Nota sobre a criança" que a constituição subjetiva depende de um desejo que não seja anônimo. Segundo o que desenvolvi, a função do desejo deixa lugar em muitos casos à função dos modos de gozo particulares de cada um dos pais com as consequências na subjetividade de seus filhos.
A diferença que M. H. B buscava foi situada por ela nesse carisma que é necessário que a criança encontre em seu mundo, que vai permitir a ela captar um traço de gozo vivo diante da ausência dos S1 da época e da presença de um empuxo a gozar mortífero.
Laurent destacava a perversão paterna e, particularmente no carisma, a função paradigmática do que o torna pai na configuração dos gozos de hoje. Sabemos que qualquer falasser pode exercer essa função, e além disso, se sabe que hoje é muito menos o pai carnal, aquele do qual a mulher teve um filho contingentemente, e bem mais aquele que a criança adota ou elege.
Os novos sintomas das crianças que Laurent descreve muito bem são os que lemos em nossos consultórios diariamente. Estes sintomas se referem a um modo de gozo adicto, no fato de que ele coloca de modo manifesto o reforço dos circuitos pulsionais e têm como particularidade que não pedem para ser interpretados. A criança atual não crê na existência do Outro, ela desnuda permanentemente os semblantes denunciando o real em jogo.
Trata-se então de uma aposta para nós analistas que trabalhamos com crianças ser o instrumento do qual a criança se sirva, tomando seriamente seu dizer, respeitando seu sofrimento e acompanhando-a na leitura e no tratamento de seu sintoma e de sua fantasia.
Tradução: Cristina Drummond (EBP/AMP)
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