DO UNIVERSAL AO SINGULAR: CONEXÕES COM O FANTASMA NA CONTEMPORANEIDADE
_Teresinha Natal Meirelles do Prado

Obra: Benito y Abril
Artista visual: Santiago Hormanstorfer

Daniel Roy nos convida a articular, de certo modo, real, simbólico e imaginário, considerando o "todo mundo é louco" e o "tudo não passa de sonho" na clínica com crianças, dando aos seus relatos de sonhos, desenhos e brincadeiras, também o "valor de gozo [que] está no princípio da economia do inconsciente"[1], dado que sua fala "se tece entre enigma e fixação de gozo"[2]. Ocorreu-me então que essa perspectiva exigiria pensar também a relação do sujeito com aquilo que o causa a partir do contexto em que vivemos hoje. Esse é o esforço deste breve texto.

Em torno do pai...

Desde a "Proposição de 9 de outubro..." (1967), Lacan se debruçava sobre a questão do Nome-do-Pai e seus correspondentes na cultura.

No Seminário 17 (1969-70), 'Lacan retira dos mitos as suas características épicas, e os reduz a fórmulas, para mostrar sua função'[3]. Deste modo o Nome-do-Pai seria um equivalente da condição de gozo: algo que o localiza e limita. Isto permite dizer que 'o pai civiliza o gozo e rejeita a porção de gozo que não é passível de ser absorvida pela função fálica, excluindo deste modo esse gozo suplementar'[4]. 'A metáfora paterna coloca em função o Nome-do-Pai como Um ao implantar um regime do "para um Outro", que traduz a ausência da mãe, enigmática e desprovida de sentido, como algo que adquire uma significação e um valor em função de um Outro. A decorrência disso é a significação fálica, que equivale ao pai como significante no campo do Outro'[5]. Contudo, essa operação fracassa parcialmente: o Nome-do-Pai não é capaz de pacificar e delimitar todo o gozo. Isto também é abordado no Seminário 17, quando Lacan dissocia saber e gozo. Deste modo, o saber do pai não é capaz de regular a verdade do gozo e a satisfação que nele está implicada.

Essa porção de gozo que o Nome-do-Pai não é capaz de pacificar pelo simbólico, restando, portanto, na memória, mas no registro do real, corresponde ao que Miller chamou de foraclusão generalizada, já que se trata de uma 'rejeição do simbólico no real do gozo que faz intrusão'. O que está em jogo aí não é uma declaração de inexistência, mas uma rejeição. Miller se apoia no escrito "De uma questão preliminar..." para apreender algo de primordial e universal no campo dessa rejeição; trata-se de algo que Lacan define ali como um "objeto que não tem nome, objeto indizível", pois não tem representação significante. Aplicando-se essa lógica a uma 'doutrina generalizada da foraclusão', a decorrência é que 'quando se constitui o Nome-do-Pai e se estabelece a significação fálica, ainda assim o "Um-pai" é incapaz de apreender essa intrusão de gozo'[6].

Esse modo generalizado da foraclusão, portanto, implica um indizível no sentido da inexistência da possibilidade de nomear. Essa articulação proposta por Miller em seu Curso de 1987, ao afirmar que 'todo mundo é louco', é retomada por ele de modo mais detalhado em 2011, quando aborda o núcleo real do gozo no falasser, especialmente a partir da afirmação de Lacan, presente no Seminário 20 e também no escrito "A terceira", de um gozo que não se referencia na interdição, mas em um corpo que 'se goza', como um acontecimento de corpo. Esse gozo é da ordem do trauma, do choque, decorrente de uma contingência, de puro acaso[7].

Miller destaca que o que permitiu a Lacan essa virada em seu ensino, tomando uma direção contrária àquela que seguiu por mais de 20 anos, foi a questão do gozo feminino: pouco a pouco ele foi sendo generalizado, até Lacan se dar conta de que se tratava de algo universal, que não caberia em nenhum tipo de binarismo. Esse gozo, que no Seminário 20 Lacan situou como gozo feminino, foi se aproximando do que Miller extrai como 'acontecimento de corpo', que escapa à dialética da interdição/permissão[8], contrariamente ao gozo imaginário do início de seu ensino, que precisava ser proibido, para ser 'retomado na escala inversa da Lei do desejo'.

Esse gozo seria não-simbolizável, 'indizível', no sentido de não-acessível à linguagem, na medida em que 'a linguagem é a castração' e, portanto, a 'Lei é a Lei edipiana, a lei do Nome-do-Pai, a lei da linguagem'[9]. Deste modo, o fantasma seria uma significação atribuída a esse gozo intrusivo através de um cenário, algo que ele pôde dizer com outras palavras em 1967, ao afirmar que o fantasma é a "única entrada para o sujeito no real"[10]; ele se constitui como um axioma (uma afirmação que não está submetida a critérios de veracidade e se caracteriza pela fixidez: não se dialetiza como o desejo, nem se modifica como o sintoma).

É o fantasma que interpreta a opacidade do desejo do Outro, através dos objetos que assumirão, nessa construção, papel de ligação. É através do fantasma que o sujeito vai recortar o que apreende da realidade, ao confrontar-se com a falta. É também o fantasma que, ao elencar alguns objetos na relação com o Outro, institui o campo do desejo, pois é através do objeto, que é tomado em diferentes vertentes ao longo do ensino de Lacan, que a questão do desejo pode se colocar para o sujeito.

Além do pai...

A mudança de estatuto do gozo em Lacan se torna evidente quando ele estabelece, no Seminário 17, que a linguagem pode operar sobre o gozo, através do objeto a, que ao mesmo tempo tem relação com a linguagem e condensa gozo. Contudo, é no Seminário 14 que Lacan logifica esse objeto, o que lhe permite isolá-lo de um revestimento imaginário.

A partir da constatação do lugar e da ação do novo mestre, o capitalista, auxiliado pelo discurso universitário, que forneceu os fundamentos para um consumo 'orientado' pela ciência, já na década de 70, ele identificou e previu mudanças na subjetividade que nos tempos atuais se tornaram evidentes: o que muitos autores referem como a queda dos valores e das referências, a efemeridade das relações (líquidas), a exigência de buscar felicidade a curto prazo e a ausência de projetos ou ideais de futuro, está relacionado à pluralização dos nomes-do-pai, que se enuncia no que Lacan chamou de père-versão (especialmente a partir do Seminário 21: Les non-dupes errent, título que evoca essa pluralização pelo trocadilho com Les non-dupes errent, os não-tolos sendo os 'tolos do pai', sem o que seu destino é a errância), que desmistifica a ideia de perversão ao associá-la ao pai, destacando que o que nomeia não é a autoridade do pai simbólico, mas uma operação meio capenga, que permite que o sujeito tenha acesso à lógica fálica e à posição de falante pelo modo particular como o pai real (que não se trata aqui do pai da horda primitiva, mas daquele que toma uma mulher como objeto causa de seu desejo e faz dela seu sintoma), ocupando o que seria uma posição de exceção, que parece remeter ao fato de servir de conector para que ela "se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele"[11]. Justamente nesse seminário, na aula de 19/03/74, Lacan faz um reflexão em substitui o nome-do-pai é substituído por uma função que ele chama de "nomear para", em que algo incide e acontece de substituir o nome-do-pai, fazendo a mesma função. E neste caso, diz ele 'estranhamente o social adquire uma prevalência de nó e literalmente substitui a trama de várias existência, detendo o poder de "nomear para", no ponto em que restitui uma ordem que é de ferro'[12].

Esse trecho extraído do Seminário 21 exemplifica de um modo intrigante o que Lacan nesse ano traz como pluralização dos nomes-do-pai. Para introduzir esse trecho, ele fala do que se concebeu, a partir de seu ensino, como o Nome-do-Pai, que se originou de uma referência ao "Psicologia das massas..." de Freud e destaca que nesse texto o fundamento da identificação está ligado ao amor ao pai. A partir disso, afirma que no texto freudiano se evidencia que o amor tem uma relação com o que ele (Lacan) intitulou Nome-do-Pai. E se pergunta o que o édipo nos ensina em relação a isto. Para tentar responder, indica que não dá para encarar esse ponto abordando frontalmente, mas será necessário fazer alguns rodeios. Então, ele resgata a propriedade do nome-do-pai e o fato de que não bastaria, para portar esse nome, que ela, a mãe, aquela que encarna a voz do Outro e por meio da qual o Outro encarna, deva ser reduzida ao que se traduz por um 'não', o não que é dito pelo pai. Essa negação, esse dizer-não proposicional funciona como suporte da identificação sexual, apoiada no universal que se funda em uma exceção que deve ser isolada, configurando o âmbito da castração. Então, esse nome do pai, que se caracteriza por um 'não' e que é veiculado pela voz da mãe através de um 'dizer não' para certo número de situações, introduz algo do campo do amor.

Isto aparece no Seminário 20, mas em outra perspectiva, quando Lacan discute os fundamentos e decorrências do famoso enunciado "não há relação sexual", e afirma que "o ato de amor é a perversão polimorfa do macho"[13]. Em 1975, Lacan é bastante claro ao associar a perversão paterna ao que é necessário para que um pai possa fazer sua função[14], e evoca o fato de que um pai deve falhar em ocupar essa função, caso contrário, como no exemplo de Schreber, é o que conduz ao pior: "nada é pior do que o pai que profere a lei sobre tudo"[15].

Se desde o início do ensino de Lacan o Nome-do-pai é reconhecido por sua capacidade de dar nome, durante a primazia do simbólico o Nome-do-Pai era definido também como aquele que diz 'Não' a um gozo que deve ser proibido, para depois ser permitido 'na escala inversa da lei do desejo'. A Lei do Pai, conforme destaca Miller[16], é a própria lei da linguagem. Então, como pensar esse nome do pai, grafado em letras minúsculas, um entre outros, que se mostra pelo nó, e que nessa época Lacan passou a privilegiar em seu ensino?

Umbigo do sonho

Circunscrever o que está em jogo no discurso capitalista, o declínio da função paterna e o imperativo de gozo nas sociedades contemporâneas, permite-nos ler uma série de fenômenos que hoje constatamos em nossa prática, uma vez que essa 'versão do pai' descrita por ele se orienta pelo gozo e não propriamente pelo desejo. Em outras palavras, o que comanda a contemporaneidade não é mais o pai e sim o imperativo de gozo.

A constatação de que o imperativo de gozo comanda a atualidade está articulada à hipótese de que algo desse gozo opaco resta para cada um como um ponto de troumatismo, algo que se caracteriza por uma primeira rejeição pulsional, identificada ao trauma inicial do encontro da linguagem com o corpo (o que J-A Miller extrai precisamente do Seminário 23, ao recolher o termo "acontecimento de corpo"), permite delimitar um aspecto fundamental nas elaborações desse momento do ensino de Lacan. Esse trauma se caracteriza por um gozo paradoxal, que se experimenta e do qual se tem horror, pois constitui um ponto intransponível marcado por um impossível de saber que evidencia um fracasso do simbólico. Toda tentativa de abordar esse ponto produz angústia. É esse ponto intransponível que o fantasma vem recobrir. Trata-se de uma espécie de segregação inerente ao sistema simbólico, algo que Lacan retoma em uma entrevista na qual indica a Marcel Ritter que o que Freud chamava de umbigo do sonho, na verdade é um ponto em que se evidencia o furo no saber, um impossível de reconhecer [Unerkannt]. É aí que podemos aproximar o umbigo do sonho como cicatriz desse furo que marca um ponto de rejeição no simbólico, uma foraclusão generalizada, que na resposta a Marcel Ritter Lacan associa ao próprio recalque originário. Ou seja: a foraclusão generalizada é outro nome do recalque originário.

É também o umbigo do sonho, Unerkannt, que Lacan evoca em seu primeiro seminário ao discutir o caso do Homem dos Lobos e o sonho que dá origem à fobia na sua infância, destacando a preponderância do objeto-olhar, do qual Freud lança mão para construir, por uma inversão, o trauma do que foi para ele a cena primária e sua especificidade, que dá origem às construções fantasmáticas que visariam a tratar o insuportável da própria castração como decorrência do amor dirigido ao pai.

No seminário 11, ao tratar da especificidade do inconsciente e do que nele funciona como causa desde Freud, Lacan afirma que "o inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real"[17]. E utiliza os mesmos significantes que empregou no Seminário 1 para falar do Unerkannt: cicatriz, umbigo do sonho, algo que é da ordem do 'não realizado', acrescentando ainda: hiância, furo, e referindo-se ao capítulo VII da Interpretação dos sonhos[18].

Lacan também menciona o Unerkannt (umbigo do sonho) na última seção do Seminário 23, ao tocar na questão do corpo. Ele diz: "A antiga noção de inconsciente, o Unerkannt, apoiava-se precisamente na nossa ignorância quanto ao que se passa em nosso corpo. O inconsciente de Freud é justamente a relação que há entre um corpo que nos é estranho e alguma coisa que faz círculo, ou mesmo reta infinita, e que é o inconsciente, essas duas coisas sendo, de todo modo, equivalentes uma à outra"[19].. Lacan faz essa referência ao mencionar a relação de estranheza de Joyce com seu próprio corpo no episódio narrado da surra em seu romance "Retrato de um artista quando jovem", tratando-se aí de uma passagem autobiográfica. Isto permite a Lacan abordar a relação de estranheza do falasser com seu corpo. Ele é marcado por essa relação, mas essa marca não é uma produção de discurso e sim um efeito do encontro traumático do corpo com um fragmento da língua, sem sentido, que produz perplexidade. Deste modo vai generalizar algo que localiza na relação de Joyce com seu corpo.

Perspectivas e questões

Lacan nos ensina que a relação de estranheza do falasser com seu corpo não é uma exclusividade de Joyce, pois o encontro traumático de um fragmento sem sentido da língua com o corpo, produz perplexidade e é algo que se dá para cada um de modo singular; o destaque dado por J.-A Miller ao "Todo mundo é louco" e ao "Tudo não passa de sonho", paradoxalmente nos remete ao impossível de universalizar. Então, para dar aos relatos de sonhos, desenhos e brincadeiras de uma criança também o "valor de gozo [que] está no princípio da economia do inconsciente"[20], e considerar que sua fala "se tece entre enigma e fixação de gozo"[21], é preciso levar em conta a pluralização dos nomes-do-pai, considerando cada sujeito na sua singularidade, para que seja possível localizar as soluções que cada um pode encontrar para seus impasses, sem tomar o 'fora da norma' como algo deficitário.

NOTAS

  1. Cf. Lacan, J. Le Séminaire, livre xiv, La Logique du fantasme , p.273.
  2. Roy, D. "Sonhos e fantasmas na criança". XXX
  3. Brousse, M.-H. (2018). O inconsciente é a política. SP: Escola Brasileira de Psicanálise, p.50-51.
  4. Miller, J.-A. "Forclusion généralisée". La cause du désir, n.99, p.132.
  5. Idem, ibidem.
  6. Idem, ibidem, p.132
  7. Miller, J.-A. [2011]. Curso de Orientação Lacaniana: "O ser e o Um" (inédito), aula 4, de 09/02/11.
  8. Idem, ibidem, aula 5, 02/03/11.
  9. Idem, ibidem.
  10. Lacan, J. "A lógica da fantasia". In Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.326.
  11. Lacan, J. (1998[1960]). "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina". In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.741.
  12. Lacan, J. [1973-74]. Seminário 21: « Les non-dupes-errent ». Inédito, aula de 19/03/74.
  13. Lacan, J. (1985 [1972-73]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.98.
  14. Lacan, J. [1974-75]. "RSI" (inédito), aula de 21/01/75.
  15. Idem, ibidem.
  16. Miller, J.A. [2011]. Curso de orientação lacaniana: "O ser e o Um", inédito, aula de 02/03/11, p.5.
  17. Lacan, J. (1985 [1963-64]). O Seminário, livro11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.27.
  18. Ibidem, p.28.
  19. Lacan, J. (2007 [1975-76]). O Seminário, livro 23: o Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.145.
  20. Lacan, J. 2023. Op.cit.,p.273.
  21. Roy, D. XXXX