Em 1963, no seu Seminário sobre A Angústia Lacan aborda o pesadelo colocando ênfase na presentificação no sonho de um Outro em posição enigmática. O enigma, consequência da confrontação com um significante opaco e vazio de significação em quanto ao desejo do Outro, está ligado a uma certeza: esse Outro quer algo e o sujeito o ignora[1]. Ali reside o sinal de angústia: é o sinal de que já não podemos brincar com o desejo do Outro. Podemos pensar neste ponto o porquê da frequência dos sonhos de angústia na criança, que é por excelência o objeto de demandas e dos desejos parentais, sujeito assujeitado ao desejo enigmático do Outro. Vamos recordar rapidamente o que antecede o início da fobia do pequeno Hans. De fato, no parágrafo D do capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos, Freud sinaliza que se deve abordar o problema da angústia nos sonhos através da fobia já que a angústia somente surge quando o sintoma de evitação fóbica fracassa. Para Lacan a angústia do pequeno Hans, antes do aparecimendo do sintoma-, não responde à ameaça da castração frente ao desejo incestuoso (interpretação edípica) senão que está do lado do furo que se abre para a criança a partir do despertar pulsional. Lacan nos permite passar da lógica da castração –que não será anulada- à lógica da irrupção. A eclosão da angústia começa no interior do corpo sob a forma de uma estrangeiridade provocada pelas primeiras ereções. Um furo se abre, enquanto o pequeno Hans vivia placidamente no paraíso do falo imaginário que encarnava perfeitamente para o Outro materno, a chegada da irmã e o surgimento do pênis real o confrontam à impossibilidade de satisfazer a mãe, confrontação à falta materna que a criança não pode preencher, como diz Lacan, com esta "coisinha miserável". Diante disto, a criança se encontra presa às significações do Outro. O dilema do pequeno Hans começa ali e a saída será o sintoma fóbico. Mas o início do dilema está na confrontação com o desejo do Outro, e o que Lacan chama ali de "regressão": ao não poder completar a mãe com o falo, o risco é de ser inteiramente ele mesmo tomado como objeto de devoração.
Trago este exemplo paradigmático porque nos indica o valor de que devemos lembrar na clínica da criança estes momentos de brecha que terá razões e causas singulares em cada caso. Vemos como os sonhos de angústia se inscrevem nesta brecha que se apresenta à criança no momento em que a falta do Outro aparece e que ele já não sabe o que esse Outro quer, confrontação ao enigma do desejo do Outro e a angústia consequente, o sujeito já não sabe que o objeto é para o Outro no seu desejo. A angústia marca a emergência para o sujeito de sua dependência ao Outro que é própria a toda constituição do sujeito. Os cavalos para o pequeno Hans são o lugar da transposição desta angústia ligada ao enigma do desejo do Outro, se opera a passagem do enigma ao objeto. Isto marca a direção da cura que Lacan mesmo propõe: passar do objeto ao enigma respeitando o valor do sintoma como solução.
É por isso que os sonhos de angústia nas crianças são sempre um pharmakon posto que se apresentam com frequência repletos de monstros, animais ferozes, zumbis e tantas outras figuras que lhe envenenam a vida, que não o deixam dormir- nem a eles nem ao Outro parental-, mas serão também o remédio pelo qual a criança poderá, via transferência, sair deles, contando-os. Isto que se apresenta ao sujeito no espaço do sonho, vamos tentar pegá-lo na cura mas mediante a articulação. Podemos apostar que quanto mais consigamos arrodear, contornar através da cadeia de significantes o real em jogo nos sonhos de angústia, menos esse real terá que insistir e invadir no espaço do sonho. Porque se para a criança os pesadelos estão povoados de seres terríveis, para o analista se trata de pensar o medo a partir da angústia como sinal de um real.
Uma criança de sete anos apresenta um sintoma de fobia acompanhada de sonhos de angústia. Trazida pelos pais exaustos já que o terror da criança não os deixava dormir. A fobia tinha começado há um ano e meio quando o seu irmãozinho nasceu. O personagem principal era uma bruxa, particularmente, o grito da bruxa. Este grito a criança havia escutado num conto de áudio, diz que está aterrorizada e aparece logo depois a ideia de que a bruxa morava no seu armário. Os pesadelos se tornam cada vez mais frequentes, diz ser difícil relatar os sonhos, somente sabe que acorda bruscamente, chorando e recorda vagamente a presença de ladrões no sonho. O medo de dormir sozinha no seu quarto se instala por conta da bruxa no armário e dos possíveis pesadelos. Quando os pais chegam à consulta me dizem que somente dorme acompanhada do pai no seu quarto, senão, é o pai que tem que dormir na sala e ela dorme com a mãe. É impossivel levá-la ao seu quarto durante a noite porque tem um sono muito leve e verifica a todo momento a presença do Outro parental. Os pais me dizem que estão exaustos e frustrados já que a sexualidade entre eles se tornou não somente pouco frequente, senão que não conseguem conceber o terceiro filho que tanto desejam. A criança fala abertamente dos seus medos em sessão, mas também do seu irmãozinho que tanto ama, mas me diz que não entende por que ele pôde dormir no quarto dos pais durante os primeiros meses e ela não. Vai utilizar durante várias sessões os playmobils. Um dia monta a disposição da sua casa com os playmobils, me mostra onde está o quarto dos pais e me conta um segredo: o que ela mais gostaria que ocorresse é que se construísse uma janela entre o quarto dos pais (onde ela dorme finalmente quase todas as noites) e a cozinha, na qual ocorre a maioria das conversas entre os pais, essas conversas que ela não consegue escutar. Me diz que pediu várias vezes à mãe que coloquem uma janela entre a cozinha e o quarto. Leio ali a curiosidade sexual da criança e o início da constituição de um fantasma onde a pulsão escópica é central: ver pelo buraco no ponto exato da sua exclusão, da sua saída de cena. Vemos ali um início de uma cadeia significante, uma série que se constitui: o armário, o grito, a janela. Me permito sinalizar-lhe: "ah, querer ver tudo", "escutar tudo". Os pais verificam um apaziguamento dos estados de tensão, não consegue dormir sozinha mas já não acorda durante a noite, não apresenta mais esse estado de alerta que reflete uma oposição ao desejo de dormir. A criança consegue dizer sua ambivalência em relação ao irmão que adora e inveja ao mesmo tempo, não sem relação a figura desse ladrão que invade os seus sonhos, aquele que lhe roubou o seu lugar de objeto único de adoração materna.
Duas interpretações desenlaçam o sintoma que se revela no seu estatuto de verdade e de satisfação. Falando do irmão: "O amo mas às vezes não o suporto mais": lhe digo, "sim, uma criança me disse uma vez que isso a fazia se sentir uma bruxa", "sim, sou um pouquinho bruxa". Segunda interpretação fundamental, é a última sessão antes das férias de verão: Maria brinca com os playmobils, faz um quarto com uma cama matrimonial onde estão deitados um homem e uma mulher. Um menino aparece e pede para se deitar na cama com os seus pais, os pais respondem: "não, este não é um lugar para as crianças" e eu retruco: "claro, é um lugar onde se fazem as crianças". A menina se surpreende, corto a sessão. A verei somente uma vez depois das férias, a fobia e os pesadelos recorrentes já tinham cessado.
Tradução: Inês Seabra Rocha (EBP/AMP)
Título original: Sueno y fantasma en la infância.
NOTAS