O tema das fantasias e sonhos para este número de Rayuela me permitirá destacar a dificuldade que estas noções trazem para o autismo.
O tema em si foi imposto para nós, no La Cigarra, no encontro com sonhos e fantasias em sujeitos autistas desdobrados em análise. A partir disso, a particularidade da investigação toma o viés de sonhos e fantasias em análises que estão em curso. Isto faz da leitura da transferência o fator fundamental e a pergunta sobre se, neste sonhar particular, colocar em imagem dá lugar a uma cena que está articulada, ou não, a uma significação inconsciente. As fantasias recolhidas no tratamento impõem questões do mesmo teor.
Lacan[1] formula a verbosidade como própria ao autismo, considerando-o por efeito do encontro com a linguagem e suas consequências. O ser falante autista deve, então, ser pensado como uma modalidade particular de relação com lalíngua que pode ou não chegar a se articular à linguagem[2] mas, sem dúvida, é alguém a escutar, porque no autismo e sua defesa trata-se da dificuldade de entrada no circuito pulsional, a partir do insuportável do gozo que coloca em jogo o contato com os outros.
Freud[3] estabelece que a brincadeira das crianças aparece, inicialmente, como resposta frente ao insuportável da ausência do Outro. Assim, a brincadeira toma o lugar de uma tentativa de marcar a perda. É neste fazer repetido que Freud capta, no ir e vir do carretel que seu neto lança frente à perda do objeto amado, que nasce a representação. O sujeito se torna significante ao operar a perda fundante inscrita entre o Fort e o Da que localiza na palavra a ausência do objeto e seu retorno. Desta maneira, um fazer dá lugar a um sujeito que ativamente produz a perda a qual antes ficava submetido. Por sua vez, Lacan[4] poderá situar no surgimento da hiância entre os dois significantes, o buraco onde vem a alojar o objeto enquanto perdido, do qual emerge um sujeito na condição de representado. Neste lançar-se, é o sujeito que se reproduz como perda, já que o que retorna desde a palavra levará a marca do impossível do encontro com a Coisa.
O lugar de produção que Freud situa nesta observação é crucial na infância, já que permite diferenciar a obrigada reprodução de um circuito de buracos já estabelecido, de um fazer que assinala o instante de seu forjamento. Em "Mais além do princípio do prazer", Freud descreve o surgimento da repetição em que o encontro com o trauma alcança um ponto de fixação, selando para sempre uma satisfação pulsional a recorrer, por meio de um circuito, pelo objeto perdido. Brincar, fantasiar e sonhar em ocasiões têm valor performativo e foi isso que Freud soube localizar magistralmente: a reiteração da cena traumática expele duas palavras com valor de acontecimento que fundam uma relação inédita à linguagem, o alcançam, e com ele é possível nascer o campo da ficção e do desejo. A pergunta é se é essa, e com essa condição, a única maneira.
a. Uma criança autista de 3 anos, com poucas palavras e nenhuma sintaxe. Palavras soltas que se justapõem uma atrás da outra sem possibilidade, a princípio, que alguma delas alcance o estatuto de S2, para referir uma significação à palavra anterior. Submersão na pura ressonância própria de lalíngua, sem estrutura e, portanto, sem possibilidade de diferenças.
No decorrer do tratamento, os pais me avisam que a criança teve um pesadelo, seu primeiro sonho registrável pelo Outro. Eles o acordam quando o escutam gritar, enquanto sonha. Em prantos, articula numa sintaxe uma primeira demanda : "chamem Gustavo".
b. Um adolescente que chega a falar, depois de dolorosos anos em terapia cognitivo comportamental, chega para consulta pelo medo de concretizar uma fantasia que se apresenta de maneira compulsiva: no poder se conter de tocar nas mulheres com as quais cruza nas ruas.
A possibilidade de uma sintaxe articulada alcançada na terapia anterior - o exercício cognitivo comportamental fez possível nele um pensamento organizado - oferece uma marca e uma aparência de estrutura de cena a uma imagem em que pareciam confluir um desejo em conflito com o eu, articulado em uma representação intolerável: imaginar que não consegue se conter. O mesmo desespero pela realização do sexo o leva a buscar com insistência uma namorada, mas encontra uma dificuldade sem solução de habitar um modo de linguagem que exclui o meio dizer proprio da enunciação. Assim, não encontra como se orientar no desejo em que um olhar diz, desdiz, desacelera ou chama a interpretar um enunciado que sempre foge.
Ainda que tente se orientar na aprendizagem de novos protocolos que abrem a sentidos contrapostos - "podem te dizer que sim, mas você deve prestar atenção se sorrie ou está séria quando falou isso" - o saber adquirido, nada desprezível, somente abre o jogo para a comunicação, mas não dá entrada ao campo do desejo. Então, que ordem da sua fantasia está em jogo?
Passado um tempo em análise, conta com surpresa o impacto frente a sua primeira ejaculação alcançada na masturbação, dias antes. O analista se surpreende também, já que o jovem sempre relatava que as fantasias com mulheres o levavam a se masturbar. Explicará, então, que a excitação que o tomava tinha por causa um desejo que o conduzia à masturbação mas, de repente, "tudo ficava escuro" e, então, se detia. O "mas", que determina na leitura uma detenção, fica por conta do analista, já que no circuito de satisfação estabelecido nunca a considerou como detenção, senão a culminação do ato. A masturbação era simbolizada no único fazer existente conhecido: desejo - excitação - efração do imaginário, que funcionava como limite a um desejo desarticulado do gozo sem ter alcançado, nem concebido, jamais a ejaculação como finalidade. Depois de anos de análise, esta o surpreenderá sem que a tenha buscado.
Nos testemunhos de autistas célebres, nota-se tanto sonhos como fantasias. A novidade aqui é a diferença que possa haver enquanto efeito articulado ao tratamento.
No caso do pesadelo em questão, surpreende a sincronia que articula a irrupção de um corte insuportável, numa dimensão de apelo, que se faz possível transmitido em uma primeira sintaxe. Aqui o sonhar traz angústia; o corpo fica afetado - há corpo cortado pelo afeto -; o pesadelo fica direcionado para o analista no lugar do outro significante. O despertar, que traz o apelo ao Outro, organiza a efração dos elementos dos sonhos em uma série : S1-S2. Surpreende, inclusive, o passo de linguagem que se faz possível no momento mesmo do despertar. Ainda se no momento do pesadelo os elementos que rompem inarticulados, o pedido imediato posterior, os circunscreve em uma primeira produção na transferência. O essencial do sonho é a dimensão de apelo que enlaça. Vale reiterar que nessa direção o saldo é um corpo afetado, passível de enunciação, pela novidade do ato psíquico que implica o sonho[5]. É ali que o lugar do analista, como aquele significante que vetoriza a série, torna possível o buraco onde é possível depositar o insuportável recortado por um sonho que não alcança a representação mas que, enlaçado ao analista, se faz linguagem.
Pode-se ler aqui um sonhar que não nasce por efeito da análise, onde o real alcança uma primeira localização que traumatiza e que toma valor significante pela direção que veicula sua articulação ao analista. Dito de outra maneira, a vinheta parece constatar o passo de uma justaposição de S1 a uma série, em que uma direção do analista dá lugar ao sonhar como tramitação inédita do gozo.
O lugar da fantasia mortificante que traz para a análise o jovem da segunda vinheta permite interrogar a presença de un imaginário que deve se colocar em relação ao estatuto de uma satisfação que não tem por efeito a detumescência, ao se apresentar desvinculada da ejaculação como culminação do ato masturbatório. Isto cria um modo particular de cena imaginada que obriga a pensar se é possível sustentar aqui a noção de fantasia. Em todo caso, o que é certo é que o que aparece como temor compulsivo não fica articulado à fantasia inconsciente, já que não é o recalque que organiza o sistema.
A este respeito, é possível que o mandato superegóico que empuxa a tocar possa se colocar por conta de uma ordem de palavra imperativa, o que Lacan localiza no Seminário 1 como "estado nodal da palavra"[6]. Isto tornaria possível a hipótese de que alcançar a linguagem pela via de uma aprendizagem - é o que o jovem conseguiu na terapia neurocognitiva – torna possível um modo de imagem que difere do semblante[7] e que, quando busca se articular ao gozo, somente desperta o modo imperativo do significante[8] que coloca em risco a unidade imaginária precariamente alcançada. Dali a novidade surpreendente construída numa análise que ignora o aprendizado: a constatação de um novo arranjo em que, agora sim, a fantasia alcança o corpo para sustentar um gozo inédito. Ou talvez : é agora possível o corpo com estatuto de algo que se tem, aquilo que torna possível um modo de gozar que não irrompe como mutilação e, então, uma fantasia toma corpo e dá vida ao sujeito.
Tradução : Ana Martha Wilson Maia (EBP/AMP)
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