Na clínica com crianças há um tipo de sonho que tem valor de sintoma, pois é o que muito comumente leva os pais a procurar um tratamento para seus filhos: trata-se do pesadelo. O pesadelo foi abordado por Freud, em Interpretação de sonhos, como a expressão "sonho de angústia". Esse tipo de sonho apresenta particularidades que concernem, de maneira muito especial, a relação do sujeito com o real. Primeiramente, considerando a tese de Freud sobre o sonho como realização de desejo, o pesadelo é um sonho que traz a marca do desprazer. Por outro lado, considerando a tese da tendência fundamental que é o desejo de dormir, ele faz despertar.
Em uma das ocasiões em que Freud apresenta o sonho como realização de desejo, ele nos remete inicialmente ao que pode se passar quando a mãe põe o filho ou a filha para dormir. Nesse momento a criança dá expressão a uma infinidade de desejos: quer continuar brincando, pede mais um beijo, deseja ver mais alguma coisa ou escutar a leitura de um livro. A mãe satisfaz alguns desses desejos e adia outros para o dia seguinte, usando de sua autoridade[1]. Em seguida, Freud relata a história contada por Baldin Groller – um popular romancista austríaco do século XIX – sobre o menininho mau que acordou no meio da noite e berrou: "Eu quero o rinoceronte!" Então, conclui: "Uma criança mais bem comportada, em vez de gritar, teria sonhado que estava brincando com o rinoceronte. Uma vez que um sonho que mostra um desejo como realizado é acreditado durante o sono, extingue o desejo e torna o sono possível."[2]
Essa tese da realização do desejo no sonho não é contrariada no sonho de angústia. O que ocorre nessa formação do inconsciente é que a própria censura do sonho se vê ameaçada em seu trabalho significante. Então, o sonho, que cumpria a função de realizar o desejo para impedir uma interrupção do sono, não pode mais desempenhar essa função e assume, em vez disso, a outra função de prontamente por fim ao sonho, fazendo o sonhador despertar. Em ambas situações exerce sua função de guardião:
"Ele comporta-se como um guarda-noturno conscencioso que, primeiro, desempenha seu dever pela supressão das perturbações, de maneira que os habitantes da cidade não sejam despertados, mas depois continua a cumprir com seu dever por si próprio, acordando os habitantes se as causas da perturbação lhe parecem sérias e de um tipo que ele não pode enfrentar sozinho."[3]
No tratamento analítico, o ponto que permite localizar a instância do despertar é essa perturbação perigosa no sonho de angústia, geradora de desprazer. É ela que aponta para o inconsciente real.
Em Causa y consentimiento[4] Miller afirma que a abordagem lacaniana do sonho não se contenta em pôr em relevo os mecanismos significantes do sonho, pois é preciso articulá-los ao gozo. Para levar adiante essa concepção, ele retoma o texto de Freud Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911), do qual destaca que o processo psíquico sob o qual se baseia as formulações do inconsciente é regido pelo "princípio de prazer-desprazer": o funcionamento do inconsciente busca prazer (Lust) de forma gananciosa, o que aciona o processo de defesa (Abwendung) para evitar o desprazer (Unlust). No nível do funcionamento psíquico, portanto, há o real que o sujeito do prazer evita, e esse real é o desprazer, que resta como resíduo do próprio modo de funcionamento da experiência do inconsciente.
Desta concepção do aparelho psíquico que tem por finalidade o prazer, se deduz o falasser (parlêtre)que, de modo algum, se dedica à realidade exterior, pois aquilo à que se entrega é o gozo. É o que Lacan postula, na sua releitura do inconsciente, nos anos 1970, em Televisão, sob a fórmula: "o inconsciente trabalha para o gozo". Quando Lacan migra de uma hipótese estrutural do inconsciente para a de um aparelho cuja finalidade é o prazer, abre-se, a meu ver, uma outra perspectiva para a decifração do sonho.
Ainda em Televisão, encontra-se a afirmação nada evidente sobre o papel da decifração no aparelho do inconsciente, cujo funcionamento está a serviço do gozo: "O processo primário no inconsciente, não é algo que se cifra, mas que se decifra. Digo: o próprio gozo"[5]. Parece paradoxal a ênfase na vertente do gozo não desfazer a importância da decifração na experiência do ser falante com as formações do inconsciente. Miller esclarece: Lacan diz que não é algo que se cifra, porque ele não opõe os termos cifra e deciframento. O gozo não se cifra, porque não é uma substância energética, como o concebe o saber da ciência, mas, sim, algo que se cifra e se decifra na interpretação. A conclusão que se pode extrair é que o gozo que se supõe no processo primário, sob o modo de um resíduo, é a matéria propriamente decifrável.
Em suma, se o gozo não se confunde com uma pura cifra e aparece como finalidade última do inconsciente, pode-se dizer que ele se decifra na interpretação. Se o gozo se decifra na interpretação, logo, como propõe Miller, as formações do inconsciente se apresentam como interpretação. O sonho trabalha para a finalidade do gozo, de acordo com o princípio de prazer, gerando a aparição súbita do efeito sujeito – interpretação selvagem – por meio do encontro faltoso com a satisfação pulsional. Segundo Lacan, o sonho é a interpretação produzida pelo inconsciente, e o sentido incoerente que encena oniricamente é uma roupagem daquilo que se articula como frase. É bem isso o que se demonstra em Interpretação de sonhos, onde Freud substitui a interpretação selvagem, própria do trabalho do sonho, por uma outra, a interpretação refletida, que faz aparecer os resíduos do sonho, ou seja, a falha da significação que conota o desejo inconsciente.
No sonho do pai que não sabia que estava morto, Freud acrescenta ao texto manifesto: "segundo seu desejo". Esse acréscimo é a chave da interpretação, pois faz surgir a falha dos enunciados do sonho, que situa a mensagem, não como o que vem do sonhador, mas como algo que vem de outro lugar, do além, de deus[6]. No caso do sonho do paciente de Ella Sharpe, esse acréscimo vem do próprio analisante, ao terminar o relato manifesto de seu sonho. Lacan mostra[7] que a "falha da frase" surge na correção imediata que o paciente faz do mal uso gramatical do verbo to masturbate (verbo intransitivo, que no sonho é usado transitivamente: I masturbated her[8]. Ao se justificar, o sonhador mostra que se trata de se marturbar[9].
Na minha experiência clínica com crianças, o relato de um sonho raras vezes é apresentado naturalmente. Principalmente quando o que motiva a demanda de tratamento são os sonhos de angústia, não é incomum a criança ter certa dificuldade para relatá-los. Costumo manifestar meu interesse pelos sonhos e perguntar pelos pesadelos, respeitando, por certo, o tempo necessário para a transferência se instalar solidamente. Ainda que a criança saiba que a cena do sonho é diferente da cena da vida de vigília, deliberadamente costuma evitar falar do pesadelo para esquivar-se da "coisa" sonhada. Isso aponta para "um transbordamento do sonho na vida real"[10]. Foi o escritor Gerard de Nerval que empregou essa expressão para descrever o efeito da notícia da morte de uma pessoa querida sobre seus sonhos. Em um movimento inverso, a experiência da criança com o sonho de angústia, ou, mais precisamente, com o ponto do sonho que gera desprazer e faz despertar, é a de uma ameaça desse ponto transpor para sua vida acordada.
Uma menina de cinco anos veio consultar-me por causa dos seus pesadelos. Desde que se iniciaram, outras dificuldades sintomáticas vão se instalar: falta de concentração na escola, crises de ansiedade diante de qualquer afastamento da mãe, choro constante, perda do apetite. Após alguns encontros, ela consegue relatar o ponto manifesto do sonho que a faz despertar no meio da noite: é a cara de um cachorro com a boca aberta, que vai chegando, chegando, muito perto de seu rosto e ela acorda. Nas sessões, o jogo que ela propõe gravita em torno de cuidados variados dispensados a bonecas e bonecos. Um dia, antes de entrar para a sessão, estamos na porta da rua e assistimos a cena de um cachorro rosnando e mostrando os dentes para seu dono. Na sessão, eu comento: "Você viu como aquele cachorro mostrou os dentes?" Ela balança a cabeça, respondendo afirmativamente. Então pergunto-lhe: "O cachorro que aparece no seu pesadelo faz igual?" Ela diz: "Não." Passados alguns minutos, acrescenta: "No meu sonho o cachorro tem cara de bravo". Continua seu jogo com as bonecas e bonecos e após alguns outros minutos ela acrescenta: "Igual a cara do meu pai." Essa última frase pode ser considerada como o acréscimo interpretativo do sonho. Ela não concerne ao pai da paciente, mas à forma como o sujeito se vê capturado pelo olhar do Outro. Na sequência da sessão, o jogo ficou agitado. A menina passa de uma coisa para outra, organiza as bonecas e a festa de aniversario de uma delas, penteia os cabelos de todos, tira as roupas delas, entrega a trouxa de roupa suja na lavanderia, volta a organizar a festa. Termino a sessão convidando-a para fazer um desenho, antes de sair. Ela aceita e desenha um cocô. Embaixo desse objeto escreve o seu nome. "Esse é o nome do cocô?'', pergunto-lhe. Então, ela rabisca o nome e circula o objeto dizendo que está desenhando um vaso sanitário. Ao lado deste, desenha um outro vaso sanitário com a tampa fechada, e depois, cantarolando, diz o que muitas crianças dizem antes de acionar a descarga: "Tchau, cocô!". Vira a folha e escreve seu nome completo.
A definição que Lacan apresenta do pesadelo é luminosa: "O correlato do pesadelo é o íncubo ou o súcubo, esse ser que nos comprime o peito com todo o seu peso opaco de gozo alheio, que nos esmaga sob seu gozo". Esse ser que pesa por seu gozo é também um ser questionador, que se manifesta na dimensão da pergunta designada por enigma. O sujeito é confrontado com o enigma em seu sonho de angústia. O acréscimo que faz ao relato manifesto de seu sonho, substituindo a interpretação selvagem – com seu conteúdo metafórico e ambíguo – pela interpretação refletida, faz surgir a falha no sentido do sonho. O desenho da menina aponta que, ainda assim, o que resta ao sujeito é uma pergunta enigmática do que ele é para o Outro, uma pergunta na sua forma mais opaca, relacionada ao obscuro, ao desconhecido. O real do gozo pulsional, por mais que se tente aprendê-lo pelo sentido, pela cadeia significante, contém uma obscuridade intransponível.
NOTAS