Em "Rarezas Inquietantes" , Revista nº 109 de La Cause du Désir , de 2019, encontra-se publicada a resposta de Lacan a Marcel Ritter. Ele diz: rendo homenagem a Marcel Ritter por ter levantado a pergunta sobre o Unherkaant …. deve-se dizer que faz falta falar muito sobre isso para torná-lo suportável.[1]
Como se pode depreender, o tema é denso, Ritter[2] sabe ler Lacan e este o celebra.
Prossegue o parágrafo: "Também para responder à pessoa que me havia feito a pergunta sobre a origem do desejo. É assim que lidamos com os percursos. É por isso que Freud começa sua Traumdeutung com a fórmula que vocês conhecem: "se não posso persuadir aos deuses do céu, passarei, por onde?, passarei pelo inferno, justamente"[3]
O parágrafo situa várias questões, uma delas é o reconhecimento a Freud. Lacan faz dele uma referência ineludível, embora também o ironize .Desta vez verificamos que reconhece em Freud um criador, um teórico e um autêntico clínico. É surpreendente a lucidez e precisão de Lacan, que, sem se identificar ao Pai da psicanálise, faz um uso magistral dele. Serve-se da pedra fundamental da "Interpretação dos Sonhos" para assinalar na resposta a Ritter, o limite do interpretável, situando uma ironia entre os primeiros conceitos de seu ultimíssimo ensino.
Assim, a experiência subjetiva de ambos atravessados por uma civilização tomada pela pulsão de morte, os faz produzir de modo diferente. Retomo agora a citação: " Se não posso persuadir os deuses do céu, passarei por onde? pelo inferno, justamente". Esta epígrafe de Virgílio[4] é a que utilizará Freud em sua célebre obra de 1900. Trata-se de um verso que ilumina de maneira deliciosa e enigmática a relação entre a realidade e o inconsciente, a fantasia, o infamiliar, os ditos e o indizível.
Na alocução de resposta aparecem vários significantes com "Un". Unerkaante ( não reconhecido), Urverdrängt (recalcado), Unheimlich ( infamiliar), Unbewusste (inconsciente). Unerkaante é parecido com Urvwedrängt, mas não são o mesmo. O Urverdrängt, o recalcado, o recalque primordial freudiano, o ponto em que o fio não pode mais se estender, visto que se romperia, a cicatriz não é o Real, mas seu ponto de conexão. O umbigo do sonho indica um ponto de basta, diz que não se pode seguir avançando com o simbólico. O Unerkaante é o não reconhecido, assinalado pela borda entre simbólico e real.
Lacan começa sua resposta, dizendo: "É até alí onde ele chegou". Se refere ao ponto de elaboração na localização de dois reais. A distinção do registro do real não é nova, já estava em Freud no umbigo do sonho e em seu próprio ensino, mas nesta oportunidade explicita e mostra uma nova precisão. Aclara os registros de Ritter, diferenciando um real simbólico, por um lado, e um real pulsional, por outro. Localiza o real simbólico do lado do cavaleiro sentado em seu cavalo, o ponto de basta das associações. Por outra parte, assinala a presença do real pulsional como um real diferenciado, desenvolvendo topologicamente a distinção dos dois reais: real simbólico e real imaginário . Definitivamente há dois reais: o pulsional e o não reconhecido, que localizam dois furos[5], o furo real- imaginário do corpo pulsional e o furo real-simbólico do não reconhecido do umbigo do sonho.
Chegam os pais para consulta, desorientados pelos intempestivos caprichos da criança, mas destacando a inteligência diante de sua pouca idade. As explicações não bastam, os bons modelos se esgotam, a criança explode no momento do "não". Bate, chuta, grita. Briga até com os amigos na hora de compartilhar. A criança que não pode ceder, visto que só há calma e as coisas funcionam a seu gosto.
J. de 5 anos, se apresenta muito seguro de si, ingressa no consultório sem inconvenientes, enquanto sua mãe o aguarda na sala de espera. Pergunto o que o trouxe. Mostra sua mochila com jogos Convido a apresentá-los. O de maior predileção é um brinquedo azul chamado Huggy Wuggy[7]. Comenta que é um vídeo game. Ofereço-lhe meu computador para que me mostre o jogo. Ele o faz com todo o entusiasmo.
Dou lugar ao jogo de sua predileção. Isso permite que ingresse na transferência o que se joga em sua vida, enlaçando na atividade lúdica a realidade fantasmática. Os saberes sabidos a respeito da fenomenologia da criança favorecem a hipótese de "sua majestade o bebê". Afortunadamente, temos que ser dóceis ao que cada ser falante ensina.
Revela-se no jogo um conteúdo forte, primitivo, violento. Não é um jogo de crianças, embora apresente um semblante infantil, e apenas o personagem principal deixa ver um final mortífero. Trata-se de uma aventura de terror dentro de uma sala de jogos abandonada. Os corredores escuros, repetitivos, cada vez mais estreitos, indecifráveis, conduzem a permanente becos sem saída. Não há nada de véu ou sublimação. Alí, o protagonista - que não se vê mas se escuta a respiração - deve cumprir missões. Se a criança/personagem consegue sortear as provas com êxito, conserva a vida; se erra, a perde. À maneira de um pesadelo, a borda real entre o literal e a metáfora lúdica se desfaz.
O brinquedo que se promete como troféu, sob sua aparência afável à distância,, ao aproximar-se se converte em homicida. Nesse esforço impossível de cumprir as ordens, o protagonista é encontrado por um boneco. O fracasso da criança se torna abraço de W.H. e game over, perde a vida. Em presença, o boneco se torna gigantesco, de dentes afiados, agente do inevitável e mortal abraço. O medo e a adrenalina predominam no jogo infernal, no qual não se pode parar de correr.
Acompanhando a criança em seu jogo, em uma das muitas tentativas, digo: " Não pode parar de correr". Corte.
Em outra oportunidade vem acompanhado da babá. Com ela se dá bem, se diverte. Ela tem o mesmo nome que a analista. Quando retorna ao consultório, diz: "Este é um lugar muito lindo". Propõe mudar o modo de nomear a analista. Vou te chamar de Candela. A analista aceita a nova nomeação, fruto da transferência, fundada no dizer da criança, cuja etimologia alude ao dar à luz e tem uma raiz comum com o substituto feminino com quem se sente confortável.
Na sessão seguinte a criança realiza um desenho de moda. Faço-me de desentendida e pergunto quem é. Ele responde com o nome do personagem. Concordo e insisto, repito a pergunta. Responde:
"A mãe, Momi Long Less. Huggy Wuggy não tem pai". A analista: Todos temos um pai. A criança continua desenhando e no final diz: Me ajuda a recortar?
Momi Long Less é a nova versão de H.W. recentemente lançada. O perigo iminente da presença real do abraço materno, desencadeia sem remédio a loucura da criança. O jogo virtual, do mesmo modo que o umbigo do sonho, localiza a conexão da criança com o gozo indizível da mãe. Ponto de contato direto, borda - por vezes difusa - onde se detém toda produção simbólica tomando o corpo infantil.
Poppy Playtime implica no espaço-tempo da infância, a necessidade de construção de véus e saberes com relação ao real do DM( desejo da mãe). Acompanhar o jogo online, no modo da interpretação dos sonhos, vai permitindo elaborar vestimentas imaginárias e uma mínima trama simbólica, que sustente uma borda imaginário-real e simbólico-real.
A função operativa do Nome do Pai na criança, não consegue ainda suturar a cicatriz e colocar o falasser infantil, ao resguardo do estrago materno. Porém, com o decorrer das sessões a criança virá, posteriormente, sempre acompanhada por seu pai.
Tradução: Lucia Mello (EBP/AMP)
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