RSI NO SONHO [1]
_Fabián A. Naparstek

Obra: Jeroglífico del sueño, 1992
Artista plástico: Luis Felipe Noé
Acrílico y tinta sobre tela, 120 x 150cm
Gentileza Fundación Luis Felipe Noe

«Tenho direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. Contrariamente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir.
É sobretudo o desejo de acordar que me agita. Mas, enfim, isso é particular.»
(J. Lacan: "A terceira", em A Terceira, RJ:Zahar Ed.,2022, p.42)

No Seminário 2 Lacan se ocupa em analisar o famoso sonho freudiano da injeção de Irma. J.-A. Miller aponta com muita precisão que nesse momento Lacan usa os três registros considerando a oposição do binário simbólico - imaginário e deixando o real como o que "fica excluído do campo psicanalítico"[2]. No entanto, nessas aulas pode-se perceber claramente o lugar central que ele dá ao real com relação ao despertar[3]. É muito interessante que no momento em que Lacan se foca em trabalhar a questão do despertar, o real adquire um novo estatuto que não tinha até aquele momento e que vai lhe tomar um tempo de elaboração para poder articular na teoria. Quero dizer que isso não vai acontecer pelo menos até a época do seminário 7, A ética da psicanálise, quando o real começa a tomar o estatuto que já se percebe nessas aulas do Seminário 2. Por outro lado, não é que Lacan tente examinar o sonho em termos de interpretar mais além de Freud o que o próprio Freud não pode analisar, mas ele se dedicou a articular o sonho com os três registros e extrair consequências disso. Nesse sentido, a primeira manobra implicava em dividir o sonho em duas operações diferentes, que resumem o seu funcionamento. Ele separa, então, duas operações que respondem, por um lado, ao ato de ter o sonho e, por outro, à prática da interpretação posterior. Ele formaliza essas duas operações respectivamente como imaginar o símbolo - iS – ou seja, "por o discurso simbólico em forma figurativa"[4] e simbolizar a imagem - sI – ou seja "fazer uma interpretação do sonho"[5]. Poder-se-ia superpor esta formalização com aquela feita por Freud no famoso esquema do pente e ver que é efetivamente um esquema que leva em conta apenas esses dois registros. Superpor ambas as formalizações supõe articular a via regressiva com a primeira operação e a via progressiva com a segunda.

Até este ponto se vê a simplicidade que Lacan tinha para retornar a Freud, mas ainda não temos nada de novo com respeito ao despertar e ao real. Por sua vez, Lacan divide o mesmo em dois momentos com dois "acmes"[6] bem marcados. O que eu quero sublinhar, nesse caso, são os pontos até onde o sonho converge em cada um desses momentos. O primeiro "desemboca no surgimento da imagem aterradora, angustiante, nesta verdadeira cabeça de Medusa; na revelação deste algo de inominável propriamente falando, o fundo desta garganta, cuja forma complexa, insituável, faz dela tanto o objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino de onde sai toda vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como ainda a imagem da morte onde tudo vem-se acabar... "[7]. Descrição poética, sim elas existem, mas isso não deixa de distinguir certas relações. Restam ligados aquí a angústia com o órgão feminino, a castração - implicitamente na imagem da cabeça de Medusa -, o inominável e a morte. Apesar de que é ainda mais preciso quando afirma que se trata da "aparição angustiante de uma imagem que resume o que podemos chamar de revelação do real no que ele tem de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível, do real último, do objeto essencial que já não é um objeto, mas algo diante do qual todas as palavras se detêm e todas as categorias fracassam, o objeto de angústia por excelência"[8]. Creio que só oito anos depois, já com o Seminário 10, A angústia, é possível explicar este parágrafo tão difícil para aquele momento do ensino de Lacan. O que primeiro chama muito a atenção é que já naquele momento ele liga a angústia com um objeto[9]. Em segundo lugar, enlaça a angústia com a aparição de um real, um real claramente situado por fora do simbólico, já que indica que é o ponto onde temos o inominável, onde as palavras se detêm e as categorias fracassam[10]. Assim, desta forma, se agregam à lista do feminino, a morte e a castração, o afeto de angústia diante da aparição do real e a presença de um objeto inominável. Isso quer dizer que o sonho, que em primeiro lugar está formalizado na forma de diferentes combinações dos registros simbólico - imaginário, agora testemunha que pode se colidir com o real. Um real que tira o sonho da ida e volta progressiva e regressiva, do girar constante entre os registros simbólico e imaginário. É interessante já que o colidir com um real supõe uma detenção dentro do círculo sem fim que transparece o trabalho do sonho. Esta é uma ideia lacaniana que aparece muito desde o começo, mas que ganha muita força no seminário seguinte. Trata-se da noção de que o real em sua aparição ou revelação detém a cadeia significante. Não está dito por Lacan, mas se poderia extrair disso uma ideia semelhante à que Freud havia chegado, em seus últimos anos, a respeito do sonho. Se para Freud o sonho é a tentativa de uma realização de desejos, com Lacan poderíamos dizer que o sonho é a tentativa de simbolizar a imagem e imaginar o símbolo. Em ambos os casos se trata de uma aspiração que pode falhar e ali se colide, freudianamente falando, com a pulsão aflorante proveniente do trauma e, nas palavras de Lacan, com o real. Para Freud se trata do que interrompe o repouso ou, dito de outra maneira, de um despertar que não é para continuar dormindo. Por sua vez, para Lacan também se trata de um despertar. É aqui que Lacan retoma a pergunta de Erikson e se questiona: "Por que será que Freud não desperta?"[11], diante da revelação da imagem comentada. Ele dá a entender desta forma que o dito golpe angustiante supõe um despertar e que se vê claramente que esse despertar tem certas características específicas. O despertar coincide aqui com a detenção da cadeia significante pelo encontro angustiante com um real. Extrai-se finalmente destas colocações que o despertar fica do lado do enfrentamento com um real e que o dormir fica circulando no espaço simbólico - imaginário. Este último é um espaço que regula tanto a vida noturna (imaginar o símbolo; sonhar) como a vida diurna (simbolizar a imagem; interpretar).  O sonho e sua interpretação giram em torno dessa época pelos teleféricos simbólico - imaginário, que fazem do mesmo um rodar interminável a não ser que se colida com o inesperado, com o imprevisto do real. Entretanto, dando um passo a mais, lembro que em um ensaio[12] sobre a alucinação, destaquei uma diferença entre a irrupção do real na neurose – enquadrado no imaginário - com a irrupção do real na psicose como fenômeno elementar onde este marco se encontra ausente. Ainda que Lacan sustente nesta aula que no momento capital da angústia se produz uma "decomposição imaginária"[13], o "caos imaginário"[14], ele se refere fundamentalmente à unidade imaginária do ego. A decomposição egóica não impede de pensar que ainda no momento de irrupção do real no sonho temos um marco imaginário, ou seja, que se trata da imagem aterradora e não de uma alucinação verbal. Segundo J.-A. Miller – falando da neurose - "o imaginário do sonho oferece às vezes, ao que está foracluído do simbólico, uma ilustração visual patética que se paga com angústia"[15]. Podemos, por fim, deduzir uma diferença entre o sonho e o dormir. O dormir como desejo está ligado a uma tendência natural[16] do sujeito humano de se manter nos trilhos do simbólico - imaginário. O sonhar é um dos "atos psíquicos"[17] que tentam levar a um bom porto a tendência a dormir do aparelho psíquico. Esta tentativa se realiza pela via de uma alucinação denominada inócua[18], diferente daquela, como falha do sonho, que rompe a tendência antes destacada. De acordo com isso, nos é oferecida agora a possibilidade de articulá-lo com os três registros nos termos que viemos comentando:

Interpretação
Simbolizar a imagem
sI
Relato do sonho
Ter o Sonho
Imaginar o símbolo
iS
Figurabilidade (alucinação)
Falha do sonho
Imaginar o real
iR

Não vou me deter em seguir o fio de como Freud se vira para continuar sonhando depois da visão aterradora da garganta – questão que está descrita muito detalhadamente por Lacan nas aulas que estou comentando -. Não obstante, o sonho termina uma segunda vez e neste caso não se trata da imagem terrível da garganta de Irma, mas da aparição, em caracteres maiúsculos escritos, da fórmula da trimetilamina. Se no primeiro caso temos uma irrupção do real que freia o devir do sonho, já dissemos que ela não é sem um marco imaginário, não é sem os contornos da imagem de uma boca aberta. Proponho pensar que na primeira detenção do sonho há uma aparição que se acha comandada pelo entrelaçamento do imaginário com o real. Mas quanto à segunda interrupção, ela não parece responder à mesma configuração. Lacan compara ambos os finais com a visão alucinatória do Festim de Baltasar[19], mas de uma forma sutilmente diferente. Para o primeiro caso, Lacan nos diz que se trata de uma "visão de angústia, identificação de angústia, última revelação do és isto - és isto que é o mais longínquo de ti, isto que é o mais informe. É diante desta revelação do tipo Mené, Thequel, Pharsin, que Freud chega ao auge de sua precisão de ver, de saber, ..."[20] Neste transe ele coloca o acento na revelação, no que se presentifica pela busca sem freio, por ir mais além, no que acomete por detrás de toda imagem que poderia velar o informe sendo o mais distante e próprio ao mesmo tempo. No segundo acontecimento sublinha já não mais a imagem, mas a "fórmula escrita, com seu aspecto Mené, Thequel, Pharsin, na muralha, para além daquilo que não podemos deixar de identificar como sendo a fala, o rumor universal."[21]. Se no primeiro final está ressaltada a imagem terrorífica e o revelatório, no segundo está marcada a fórmula escrita sobre o muro. Nesta via Lacan assinala que "igual ao oráculo, a fórmula não dá nenhuma resposta a nada. Mas a maneira mesma em que se enuncia, seu caráter enigmático, hermético, ela é a resposta à pergunta sobre o sentido do sonho. Pode-se calcá-la na fórmula islâmica: Não há outro Deus senão Deus. Não há outra palavra, outra solução ao problema de vocês, senão a palavra."[22]. É a forma com que ele pode explicar nessa época a função do escrito para o sujeito humano. Isso não deixa de nos evocar as últimas colocações sobre o lugar da letra no parlêtre, tanto em sua nova concepção do inconsciente e na separação entre linguagem e lalíngua como na concomitante e nova noção de sintoma. Ainda que sem ir tão longe, podemos extrair várias derivações desta leitura.

O que me interessa acentuar é que, na comparação de ambos finais, o segundo responde a uma detenção da cadeia, mas não mais pela irrupção de uma imagem aterradora, mas por um elemento simbólico de outra ordem que o significante encadeado na retórica. Jules Séglas também toma o mesmo exemplo de Lacan - o f

estim de Baltasar - para demonstrar o que ele chama de "alucinação visual verbal"[23]. Indico esta última para situar que tanto para Lacan como para Séglas se trata de um fenômeno da linguagem, mas com uma estrutura diferente da linguagem articulada[24]. Novamente nos vemos levados à comparação entre um evento na neurose que detém o decorrer significante e o fenômeno elementar. É que o próprio Lacan fala do enigmático e do oracular da fórmula neste caso e da fórmula para o fenômeno psicótico. Concretamente, no festim de Baltasar se vê a diferença entre os sonhos que o rei havia tido anteriormente e esta visão alucinatória das letras no muro. Os sonhos precedentes o levavam a demandar uma interpretação satisfatória, mas neste evento não apenas pedia a interpretação, mas em primeiro lugar requeria que lessem a escritura e, em todo caso, logo uma possível interpretação. Recorta-se também deste evento que a aparição da escritura detém a cena e "então o rei mudou de cor, se perturbaram seus pensamentos, as conjunturas de suas cadeiras se desencaixaram e seus joelhos se batiam um contra o outro "[25]. Finalmente, devemos registrar simplesmente outro modo de detenção da cadeia que se insere não mais no caminho de imaginar o símbolo, mas no de simbolizar a imagem. Estou me referindo ao umbigo do sonho que detém as associações quando o "sonho vai inscrever-se no desconhecido "[26].

Tradução: Cristina Drummond (EBP/AMP)

NOTAS

  1. Este trabalho é um recorte do Ensaio do ciclo letivo de 1999 no Instituto Clínico de Buenos Aires. Inédito.
  2. Miller, J.-A.: Curso de orientación lacaniana, "Donc", aula VII, de 15 de Junho de 1994, inédito. A tradução é minha.
  3. Ainda que, como diz J.-A. Miller, continua-se a manter o binarismo e neste caso é o real diante do imaginário e o simbólico juntos.
  4. Lacan, J.: "O Seminário, livro 2", O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1985, p.195.
  5. Idem, p. 195.
  6. Idem, p. 201.
  7. Idem, p. 208.
  8. Idem.
  9. Deve-se recordar aqui a conhecida discussão no Seminário 10 sobre se a angustia é sem objeto ou, como o coloca Lacan, é "diante de algo", diante da presentificação do objeto a.
  10. Cabe esclarecer que neste Seminário se lida com a definição do real como o que retorna sempre ao mesmo lugar e é no seminário seguinte que utiliza a definição do rela como o que está fora do simbólico.
  11. Idem 4, p. 198.
  12. "La alucinación en la neurosis", en Croquis Clínicos, Año 1- Número 1, ediciones Eolia, Mayo 1997, Bs. As., páginas: 35 - 50.
  13. Idem, p. 212.
  14. Idem, p. 215.
  15. Miller, J.-A.: "Despertar", en Matemas I, Ed. Manantial, 1987, Bs. As. p. 121.
  16. Idem, p.118.
  17. Freud, S.: "La interpretación de los sueños", en Obras Completas, Ed. Biblioteca Nueva, Madrid, España, tercera edición, T. 1, p. 670. 
  18. Idem 12, (Naparstek), p. 47.
  19. Ver Antiguo testamento, ed. Asociación Bíblica Católica, Bs. As., 1986, 'Daniel cap. V., p. 1128.
  20. Idem Lacan, p.198.
  21. Idem Lacan, p. 202. O sublinhado é meu.
  22. Idem 202.
  23. Séglas, J.: "Las alucinaciones", en análisis de las alucinaciones, Ed. Eolia-Paidos, Bs. As., 1995, p. 211.
  24. J. Séglas utiliza este tipo de alucinação como uma demonstração mais para separar o verbal dos sentidos na alucinação, já que uma alucinação pode ser verbal e não necessariamente auditiva. Em J. Séglas o verbal responde ao que ele chama de transtornos da linguagem.
  25. Idem 19 (Antigo testamento) , p. 1129.
  26. Idem Lacan, p. 200.