SERVIR-SE DO SONHO PARA INVENTAR ALGO QUE PERMITA VOLTAR A DORMIR [1][2]
_Ana Cristina Ramírez

Obra: "Kitty Estrella"
Artista: India Zapata. Participante de taller de arte; 6 años

"… é expressamente dito que eles não podem jamais chegar a se despertarem – quando acontece no sonho deles, alguma coisa que ameaçaria passar ao real, isto os enlouquece de tal maneira, que imediatamente eles acordam"[3]

Que a puberdade desperta, é quase um axioma da prática psicanalítica com adolescentes. Com Lacan, entendemos que desperta porque torna presente o furo da relação não sexual. O púbere se depara, neste segundo momento lógico, com o fato de que há um gozo que aparece fora da imagem do corpo e, ao mesmo tempo, com o qual não há um saber de antemão que lhe dê uma resposta sobre como lidar com isso. Mas, diferentemente do que acontece na infância, existe a possibilidade de que isso não apenas permaneça na fantasia, mas que haja um encontro com outro corpo.

Dois pesadelos encontram um destinatário

Na primeira entrevista, Alicia, de 12 anos, irá falar que pediu para vir porque não estava se sentindo confortável com seu corpo. Ela também vai falar sobre brigas com suas amigas, vai me contar os pormenores e os nomes delas para eu entender quem está brigando com quem, quem está falando de quem, quem tem ciúme de quem e assim por diante. No final, lhe digo "você está brigando com a sua imagem", ela ri, mas isso fica aí. Nas entrevistas seguintes, ela voltará ao tema das amigas e das brigas; o distanciamento de quem fora sua melhor amiga até aquele momento a levará a se dar conta de um pequeno detalhe: "necessito que outra fale por mim".

Numa sessão em que realmente não sabe por onde seguir, proponho que me fale a primeira coisa que lhe vier à cabeça. A regra fundamental freudiana evoca nela, dois pesadelos que aparecem recorrentemente e a fazem acordar chorando. Eu a ouço com atenção especial e pergunto se posso tomar nota.

O primeiro: "Ali estão os meus olhos, eu não estou, uma linha passa na minha frente, numa parede branca, até acontecer algo que se destaque. E não sei por que isso me dá medo. Sinto o sonho, é tudo suavezinho e depois acontece isso e parece estranho, áspero."

O segundo: "Eu estava dormindo e via algo branco que rolava pelo meu quarto, falam números, têm que chegar a tal número, mas não podem chegar. Sempre me levanto antes que cheguem a esse número."

Nenhuma associação lhe ocorre. O que lhe chama a atenção é que esses sonhos lhe produzam medo e lhe façam acordar. Os seus pesadelos, que prescindem das figuras do horrível, mostram-nos com total clareza como o que desperta é o encontro com um real, no sentido em que tornam presente, o irrepresentável. Mirta Berkoff nos diz que "assim como a angústia, o pesadelo é um acontecimento de corpo que torna presente o indizível, aquilo do humano que é inumano e escapa à solidariedade com a palavra".[4]

Decido preservar o enigma. Só estou dizendo que, para nós, psicanalistas, os sonhos são muito importantes e que talvez algo produza medo e não encontra as palavras para poder falar disso.

O inconsciente intérprete

Na entrevista seguinte, começa seu relato, dizendo "sonhei algo horrível". Ela está com duas amigas, a irmã mais nova e a irmã mais nova da amiga, as cinco sozinhas em uma cafeteria, vê três meninos mais velhos, um com cara de drogado. As duas meninas desaparecem. Aí se acorda. Para este sonho, sim, ocorrem associações. Diz que o que lhe dava medo naquele sonho foi pensar que "o louco ia agarrar as meninas". Ela coloca em série com outro no qual lhe roubam o celular e me conta que, para sua avó, os sonhos falam de algo que vai acontecer: "Ah, não, que medo! Você pode imaginar que eles roubam minha coisa mais preciosa? O que há de mais precioso, sua família e seu celular.

Sublinho esse medo de ser roubada produzo um pequeno deslocamento, digo que seu sonho mostra que ela tem medo de perder o que há de mais precioso. Termino a sessão dizendo a ela que talvez seus sonhos não prevejam o futuro, mas sim falem de algo que já está acontecendo, algo que agora a deixa angustiada. "Que assustador saber", ela responde.

Sua ideia de que os sonhos são premonitórios permanece. Refugiar-se no saber da Outra, neste caso da avó, é uma forma pela qual o interesse pelo saber se conjuga, ao mesmo tempo, ao horror ao saber: recusa em ler nas próprias palavras, conhecimentos sobre o mais íntimo, sobre a angústia que causa pela sua divisão.

E, no entanto, o inconsciente interpreta, continua a produzir sonhos que a despertam e continua trazendo-a à sessão. Agora, ela sonha que deve passar por algumas provas com a família, briga com a irmã mais nova e elas caem na água, que está cheia de cobras, animal que lhe produz muito medo. Ela me conta sobre as brigas com a irmã, que fica brava porque Alicia não quer brincar com ela. Ela também sonha que há uns homens que querem lhe roubar e a sua família. Ela acorda antes que eles possam fazer-lhe algo. "Que medo saber", digo e corto a sessão.

Perder o mais precioso

Na entrevista seguinte, poderá falar sobre o medo que o ensino médio produz. Ela quer ir para a mesma escola que sua prima, uma escola técnica. Pergunto sobre a orientação que tem essa escola e ela me diz que não sabe, eu rio e repito novamente "que medo saber", ela ri e eu encerro a sessão, animando-a a se interessar em saber para poder escolher.

Ela seguirá a trilha do medo na entrevista seguinte e poderá formular o que, na minha opinião, a levou a me consultar: "Tenho medo de crescer. Não quero." Trata de me explicar: "Antes eu era um triângulo, agora sou uma bolinha e vou virar um quadrado, quando eu virar um quadrado a bolinha não estará mais lá. Eu não estarei lá. Tenho medo de me perder."

Tal como nos explica Daniel Roy, o que Freud chama de trabalho do sonho tem como função, "tornar "apresentáveis" coisas "pouco apresentáveis"[5]. Seus pesadelos são uma primeira tentativa de cernir o irrepresentável, aquilo que faz furo na trama simbólica e que, portanto, desperta. E o trabalho do sonho continua, produzindo interpretações fantasmáticas sobre o inquietante. Alicia se serviu de seus sonhos para dar rosto a sua angústia, para ir localizando-a através dessas figuras que lhe produzem medo. Corrobora-se, assim, que o medo é uma primeira localização da angústia.

Ela também tem medo de que seus sonhos sejam premonitórios e lhe anunciem algum perigo. Enquanto isso, ela tem podido começar a falar sobre o perigo atual que se chama puberdade. Ela sonha para que esse perigo não a desperte muito. Também sonha para suscitar na Outra, a analista, o desejo de saber e de interpretar esses sonhos, buscando assim, fazer-se um lugar em seu desejo. Mais uma razão para estarmos advertidos sobre o ponto no qual se deve abster e sobre a manobra que é preciso inventar, a cada vez, para que Alice consinta com a posição de analisante e deixe de buscar outra que fale por ela, pelo menos no lapso de sua sessão de análise. Que suas fantasias sobre o desejo do Outro lhe permitam voltar a dormir, porque "despertar é um dos nomes do real, como impossível"[6], mas com outra relação ao que faz furo.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes (EBP/AMP)

NOTAS

  1. Trabalho elaborado no marco da Rede de Estudos e Investigação sobre a Criança e o Adolescente – REINA Neuquén.
  2. Expressão recolhida do texto Sueño y troumatisme, de Lucas S. Manuele em Cicatriz. Trauma y sueño. Grama ediciones: Olivos. (p. 53)
  3. Lacan, J. (1972-3). O Seminário, Livro 20. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, pág. 76
  4. Berkoff, M. (2021). Cuadernos del ICDEBA 26: Escuchar al niño. Buenos Aires. (p. 126)
  5. Roy, D. (2023). Sueños y fantasmas en el niño. Introdução à 8º Jornada do InstitutoPpsicanalítico da Criança do Campo freudiano, que acontecerá em março de 2025, pronunciada no encerramento da 7ma, em 18 de março de 2023. Texto em francês estabelecido por Romain Aubé e Ève Miller-Rose.
  6. Miller, J-A. Matemas I. Manantial Editores: Buenos Aires. Pág. 117